Um Dia no Hospício
 

 
Foi um dia só?
Ainda que fosse, o ambiente fazia parecer mil, mas não. Foram vários. Tomemos como um as diversas vivências que se colheram ali.
Como foi? Por quê? O que se pretendeu?
 
Foi quando as faculdades locais se uniram para formarem universidade conforme exigência da nova lei de diretrizes e bases em educação do país. Tinha-se que formar núcleos de pesquisa e extensões.
 
Fui convidado como graduado em História e mestre em Psicopedagogia para junto da mestra em Educação e da doutoranda na área de Letras formarem o NIPE – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Educação.
 
Nós juntos com dois alunos dos cursos de História e Pedagogia, que atuariam como estagiários contando créditos para sua formação acadêmica, propusemos estudar a História da Pedagogia na Psiquiatria na instituição pública psiquiátrica local.
A desospitalização dos pacientes estava em andamento. Havia aqueles pacientes que permaneciam ainda internados, aqueles que saíram de pavilhões e estavam se adaptando em casas dentro da área hospitalar e aqueles que já haviam atingido o estágio de morarem em casas nos bairros residenciais da cidade e superaram a vivência enclausurada dos pavilhões e experimentavam a vida em sociedade livre.
 
A pesquisa consistia de diversas  partes e uma das quais era de entrevistas e observações de campo. Combinamos que, já que éramos cinco pesquisadores, cada um ficaria responsável por um dia de semana visitar aquela instituição para observar os procedimentos entre funcionários/pacientes e devidas entrevistas que se dariam de forma aleatória e informal através de conversas.
 
As quintas-feiras eram minhas. A memória me faz pinçar aquela que se inculcou e agora emerge no mar desta pesquisa-ação eu narrar.
Aquela manhã estava clara e fresca. Eu observava as atividades terapêuticas aplicadas na população masculina que ainda tinham que se isolar em pavilhões devido à severidade de seus transtornos mentais.
Eu cheguei e me apresentei para o funcionário responsável de receber os visitantes. Ele me fez aguardar na sala de espera daquele pavilhão. Para aquela sala havia a porta para o pátio externo por onde eu entrei e outra maior de metal e visivelmente trancada. O funcionário me avisou que os pacientes sairiam por ela com os auxiliares de enfermagem e terapeutas que os conduziriam para trabalharem na horta: cultivavam canteiros de hortaliças. Fiquei sozinho ali enquanto o funcionário recepcionista se dirigiu para outra sala preenchendo fichas.
 
O silêncio que ficou era louco!
 
Aguardei solitariamente com meus pensamentos e primeiras anotações do dia.
Um som isolado de metal seco me fez assustar provocando em mim expressão facial de terror, eu sei.
Aquele som teve companhia quando se somaram outros. Eram diversos agora: chutes e socos eram dados no metal da porta como marteladas na bigorna.
Além parecia que uma legião queria pôr abaixo a porta que impedia a passagem do exército furioso.
As trancas e as espessuras do metal tinham a razão explicada agora de estarem ali: barrar a multidão de transtornados que queriam ir para a área externa, mas tinham que aguardar seus condutores e quem lhes punham limites em seus delírios para fugir da clausura noturna.
Fui para um canto da sala de espera buscando a proteção do ângulo das paredes. A porta de metal foi aberta rangendo. Despontaram dois funcionários da saúde que sob interjeições ordeiras impunham disciplina na horda de pacientes que se formou. Logo percebi que estavam sob o efeito de tranquilizantes que lhes emprestavam ar de zumbis.
Saíram ao pátio. Pareados foram conduzidos a um galpão. Eu seguia atrás observando o transcurso.
 
No galpão os funcionários da saúde distribuíram ordens de trabalho e instrumentos agrícolas que não representavam perigo. Logo os pacientes se ocuparam de cuidar de canteiros e pomar. Dispersaram-se. Eu fiquei anotando e conversando com o funcionário que por ali também ficou.
 
Passou um tempo e percebi que os pacientes reapareceram como se estivessem automatizados para naquele momento retornarem ao galpão. Foram saindo de seus recantos e tumultuando-se na porta dos fundos. Estendiam as suas mãos e com sons guturais pediam algo – de novo a aparência de mortos-vivos.
O funcionário me disse que era a hora de fumar. O vício da nicotina despertava neles esta ação robótica de saberem que era a hora. O fumo era de rolo picado distribuído com papel para fazerem seus rústicos e fedorentos cigarros que eram acesos por isqueiro controlado pelos funcionários.
 
Entre os inúmeros pacientes distinguiam dois que muito se assemelhavam. Quatro olhos verdes olhavam fixos. Indaguei sobre aqueles dois jovens que eram tão iguais. Obtive como resposta que eram gêmeos e de uma localidade rural. Haviam sido recém-internados pelos pais. Os dois sofriam a severidade da doença simultaneamente. A família não tendo controle sobre os dois tiveram que interná-los. Agora medicados não representavam perigo.  A medicação lhes emprestavam aspectos de abobados apesar de seus traços mostrarem a beleza juvenil e o jade de seus olhos catatônicos.
 

Outras manhãs se seguiram ali naquele hospício levando a muitas reflexões sobre o comportamento humano: Loucura – condição, saúde ou eugenia?
 



Leonardo Lisbôa
Barbacena, 20/03/2016.



 
PDF sobre o Hospício de Barbacena:
https://lookaside.fbsbx.com/file/Sucursal%20do%20Inferno%20-%20O%20Cruzeiro%2C%201961%2C%20edi%C3%A7%C3%A3o%2031.pdf?token=AWzI2Ird2sJDtC3aSEXLILKEOkQhduXwItPin9a8y9Cdr8GygfR1hYdtoB5K9fjCY1DLTRVI1fdrDucj9_zkG_kdEytgwkUfTOAG-ebI-T7iOPFFjKQ8y0wxChE5c8whDtZef4fKZF-RcALQAlqgK4Ug



 



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Leonardo Lisbôa
Enviado por Leonardo Lisbôa em 26/03/2016
Reeditado em 26/03/2016
Código do texto: T5585457
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