Sebastião
E o menino acorda antes do galo cantar. Sebastião fica com os olhos abertos, mirando pra cunheira da casa. No alto, um pequeno buraco teimoso, deixa entrar um filete de luz pálido que indica que o dia já está nascendo e logo virá o sol com toda a sua grandeza e calor. Tião acha que o sol é ruim e vaidoso, porque ele queima a plantação e não deixa a chuva aparecer. Ele pula da cama e coloca o pé nu no chão batido do quarto, coça sua barriga como faz sempre e tira o excesso de remela que todo dia teima em amanhecer no seu olho. Ele não entende pra que funciona a remela, já tentou ficar acordado pra ver se eram os irmãos que colocavam terra no seu rosto, mas sempre acabava dormindo. A casinha da sua família é uma típica construção de taipa divida em três cômodos: dois quartos e pra fechar uma sala/cozinha e mais o que precisasse ser. Lá fora, no quintal, a família tinha uma latrina. No seu quarto, dormem seus dois irmãos mais velhos Silvano e Joaquim, além de um primo mudo, o Matias, que veio morar com a família quando sua mãe viúva faleceu. Dizem que morreu por causa de um mosquito, outros falam que foi uma forte disenteria. Sebastião acha que ela engoliu alguma coisa pra esquecer a tristeza.
Tião chega ao terreiro da casa, e um gato preguiçoso e magro abre um olho e dá um miado agudo. O cachorro nem abana o rabo, curtindo o seu sono. Ele lava o rosto numa gamela e escuta sua mãe acordando e já se dirigindo ao fogão de lenha. Seus pais dormem no outro quarto com sua irmãzinha pequena, Francisca. Dona Lindaura é dessas mulheres que parecem que vão se quebrar a toa, por conta do seu aspecto frágil e cansado. Mas cuida da casa, dos filhos, busca lenha, faz um cozido de batata doce pro almoço, cuida dos poucos animais que não morreram na última seca e isso tudo, com Francisca a tiracolo ou rastejando perto das pernas dela, aqui e ali. Seu Bartolomeu, é um típico nordestino de pele bem avermelhada pelo trabalho ao sol, mãos calejadas pela sofrida lida numa terra empoeirada que não dá mais frutos. Ele já acordou e foi buscar umas espigas de milho pros meninos comerem antes de irem pra escola. O irmão mais velho, Silvano, não estuda e ajuda o pai com seus afazeres. Os mais novos, Joaquim e Sebastião vão pra escola, Matias tentou ir também algumas semanas, mas não conseguiu aprender nada, então ajuda Dona Lindaura com a casa.
Sebastião até gosta da sua casa, de acordar e olhar pro teto. Só acha que as vezes o teto vai cair em cima deles quando vier a chuva que tanto esperam. Mas o que Tião gosta mesmo é do seu caderno de escola, cheio de coisas que ele fica imaginando o dia inteiro. Coisas e lugares bem diferentes de onde ele está. Uma vez, vieram uns padres na rocinha da família e trouxeram carrinhos de terceira mão para os meninos, um pirulito pra cada e até uma boneca sem perna para Francisca. Os padres falaram com Sebastião que se ele estudasse direito e rezasse todo dia pra Deus, que ele iria um dia morar na cidade grande e talvez quem sabe, fazer até 5 refeições por dia. Tião não entende direito quem é Deus. Uma vez, quando foi na igreja, ouviu que Deus é o pai de um senhor muito bom chamado Jesus. Então ele entende que Deus deve ser bom também. Ele rezava todo dia e estudava com toda vontade, porque daquele dia pra cá, toda vez que sua barriga doía de fome (e não eram poucas vezes) ele se lembrava das cinco refeições que os padres falaram. Na época de férias de escola, e quando a chuva demora muitos meses pra vir, ele faz uma refeição por dia. A mãe ensinou que se ele tiver fome, que pode deitar de lado na cama e fechar os olhos, que esquece a fome.
Sebastião e Joaquim saem por volta de 6 da manhã, e pegam a estradinha que leva até a vila onde fica a escola. Eles caminham cinco quilômetros descalços, mas já estão acostumados, porque os pés estão duros de tanto correr pelo terreiro da rocinha, nos momentos em que sobra algum tempo pra brincadeira. Na escola, ele gosta de sentar perto de Maria Aparecida, porque ele cisma que ela tem um cheiro diferente de todo mundo, um cheiro de maçã do amor, que ele comeu uma vez na festa da igreja e nunca mais esqueceu. A professora ensina a juntar as letras e contar laranjas, falou que nosso país chama Brasil e tem uma pessoa que chama presidente e trabalha pra ajudar todo mundo. Ele queria muito conhecer essa pessoa e pedir para ganhar maçã do amor todo dia pra sua família, assim sua barriga não ia doer de vazia e a Francisca não choraria de fome. Na hora de voltar pra casa, ele imagina como é esse tal mar que a professora falou, que tem água pra encher muitos e muitos e muitos terreiros. Ele imagina que um dia vai chamar Maria Aparecida para fugir pra ver o mar. Só que o que ele vê no momento é a carcaça de mais um boi apodrecendo na beira da estrada. Ele lembra desse boi, Tião colocou o nome nele de Barnabé e todo dia que ele voltava da escola ele conversava um pouco com Barnabé. Hoje Barnabé é comida de urubus.
De tarde ele e Joaquim, se juntam ao pai e o irmão mais velho e vão pra colheita de cana nas terras do Seu Nicolau. Ele gosta de seu Nicolau porque uma vez no ano ele ganha uma camisa usada do filho dele, e todo mês seu Nicolau dá dinheiro pro seu pai. Então Sebastião imagina que Seu Nicolau deve ser bom igual Deus e Jesus. De noite sua barriga dói porque já faz muito tempo que ele comeu da última vez, as vezes sua mãe faz um guisado de legumes, mas as vezes não. Ele olha pela janela e vê seu pai sentado num toco de árvore no quintal, pitando um cigarro de fumo de rolo, e com o olhar perdido lá na capoeira escura. Sua mãe chega do lado e coloca a mão no ombro do seu pai, e os dois ficam minutos ali olhando pro nada. Tião lembra então das histórias de Vó Laura, quando o vento soprava frio e os meninos se juntavam perto do braseiro do fogão, e ela falava do saci e do bicho do saco que leva menino malcriado. Ele adorava a sua vó e de vez em quando, chora escondido quando lembra que ela morreu e foi morar no céu. Quando deita na cama, sua barriga ainda dói. Ele lembra de Maria Aparecida, do mar, do presidente e da maçã do amor. Lembra que essas coisas estão tão distantes, e sua barriga dói ainda mais. Ele lembra que quando era mais novo, tinha medo das histórias de Vó Laura, hoje não tem mais. Hoje, Sebastião tem medo do sono. Medo de morrer durante a noite, medo de acordar pra outro dia.