O Espírito de Aianã
Do quarto insalubre do casebre antigo se via a mata fechada, através dos buracos da janela abertos pelos tiros da ultima perseguição. O cheiro era forte e a fome corroia o interior, pelos trovões e o sopro do vento parecia que a tempestade não tardava. O coração de Anselmo disparava, havia um ruído de mau agouro no ar, Dorinha não conseguiria atravessar o riacho se a as águas cobrissem a pequena ponte.
De um lado para o outro ele andava apertando o rifle contra o corpo, de vez em quando espiava os furos de balas na janela e via os corpos dos policiais esticados sobre as folhas, desejava que Dorinha desistisse de visitá-lo e pegasse o caminho de volta, mas era em vão pensar daquela maneira, já que fora ela a única testemunha de que os homens chegariam até ele e que poderiam ser mortos já que Anselmo havia se preparado para recebê-los, ou não, algo talvez desse errado, ela precisava enxergar, conhecia aquela personalidade reticente, mas em certos momentos se inflamava por lealdade. Aquele era o momento.
Os trovões se intensificaram e os raios abriam clareiras no meio da mata, os passos acelerados sobre o piso de madeira ampliavam a sensação de desespero, ele não tinha como se conter, Dorinha era a única coisa que lhe restava para se apegar com paixão, era a mulher que o livrara da morte, a ela deveria todos esforços em retribuição.
Mas abrir aquela porta sem enxergar o que poderia estar por trás das árvores ou das pedras que se amontoavam em direção ao rio era risco demais, mas a chuva ameaçava que viria a qualquer momento, o vento entrava cantando pelas frestas da porta.
Mais uma vez colocou um olho minucioso para vasculhar as imediações que os buracos alcançavam e destrancou silenciosamente a porta, aos poucos foi abrindo até que a estrada escura estava toda na linha do seu horizonte, com o rifle apontado saiu cadenciado,
pisou os quatro degraus da escada e deixou se levar pelas musicas que o vento soprava, lembrou-se das palavras do velho Aianã "Seja sempre amigo da natureza que ela jamais o trairá", andou mais alguns passos, olhou novamente com a arma apontada em todas as direções e foi até os corpos certificando-se de quem eram realmente, chutou um deles e retirou uma pistola ponto quarenta que despencara da mão inerte, enfiou na cinta e saiu.
Aquele lugar era chamado de Vale das Araras, uma depressão sob Serras e Montanhas, naturalmente a luz do sol não incidia muito, o casebre era moradia do curandeiro índio Aianã, que durante a grande cheia de 1948 ficara ilhado durante sessenta dias, devido ao frio e a fome estava à beira da morte quando o pai de Anselmo e um grupo de Escoteiros sofreram acidente de barco e foram levados pelas águas do rio Verde até o Vale das Araras, avistando o casebre foram em busca de guarida e acabaram salvando o curandeiro, com os mantimentos e remédios que levavam nas mochilas.
Desde então se criou um vinculo fraterno entre o curandeiro e as famílias, após a morte do pai, Anselmo aproximou-se de Aianã e passava ali dias e dias aprendendo falar com as aves, um dia Aianã se encantou, mas Anselmo ficou ali, como costumava dizer, "com a alma do índio morando com ele e com os animais".
Mas algumas pessoas ligadas aos escoteiros que estiveram com o pai de Anselmo naquele ano, também sabiam conheciam a magia do lugar, Elmo, David e Morato foram os policiais que o seguiram durante vários dias na intenção de matá-lo como fizeram com o negro Babú. O trio chefiava uma milícia que extorquia os quilombolas da margem direita do rio, naquela época os negros estavam prosperando devido ao comércio frutas e peixes que mantinham, Anselmo denunciara a pratica e foi jurado de morte.
Dorinha a negra de corpo esguio e voz de menina descobriu o plano da vingança e mandou avisá-lo por uma das Araras que ele próprio havia ensinado a falar. Quando os bandidos chegaram Anselmo preparou-se tomando o Santo Daime e permitindo que o espírito do Aianã se apossasse do seu corpo, assim usou o tiro certo para que nenhum suspiro fosse notado após tombarem na terra.
Antes que Anselmo desse mais um passo ouviu o latido de um cão apressado, voltou-se atiçando para o meio dos galhos que entrelaçavam em um tronco de árvore, apontou a arma para a direção do caminho, mas o cheiro de Dorinha lhe chegava empurrado pelo vento com o perfume das flores de maracujás, O cachorro era um velho conhecido e o coração palpitante não deixou a boca dizer nada naquele escuro chuvoso, além de um beijo quente que lhe arrepiou o corpo inteiro. Abriram a porta e ela colocou sobre a mesa a panela de tropeiro e a garrafa de pinga.