O REVIDE
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Maria, sem dúvida, era imprevisível. Robusta, nove anos, causava furor onde estivesse. As meninas a respeitavam, os garotos a temiam. Os pais da criançada faziam sérias restrições a sua companhia.
Jamais fora acusada de subtrações ou danos patrimoniais. Demonstrava, isto sim, procedimentos inconvenientes, inadequados, alterando, negativamente, a ordem e atritando-se nos relacionamentos. Não raro trocavam-na de colégio: o comportamento, em muito, deixava a desejar. Além das faltas, o descumprimento aos deveres, bem como o desrespeito, em especial aos professores, sedimentavam sua personalidade. As tentativas, através de orientações educacionais, foram inócuas. Talvez nem conhecesse a extensão de sentimentos como acatamento, afeto, convivência e cordialidade.
Os professores queriam vê-la bem longe. Mostravam-se céticos quanto à recuperação. Não estudava, contudo conseguia resultados satisfatórios. Muitos haviam sentido a força de seus punhos e o veneno de sua língua. Qualquer pretexto levava-a faltar às aulas. Metia-se nas conversas dos adultos e desconhecia horário para se recolher. A mãe mostrava-se indiferente, quem sabe até orgulhosa, ante as queixas que lhe chegavam. Provavelmente não tinha autoridade nem servia como exemplo. Constantemente, o pai ausentava-se por longos períodos. A falta de qualificação não lhe permitia postular bons empregos. Vivia de biscates, embriagava-se com frequência e tinha cara de poucos amigos. Afirmavam que andava sempre armado e bastava um olhar para demonstrar a face arruaceira. Algumas cicatrizes, pelo rosto e no corpo, atestavam conflitos, e punições prisionais. Acreditava-se que a menina herdara traços genéticos que se intensificavam aos açoites do meio ambiente.
Morávamos na rua Lobo da Costa, esquina com Dr. José do Patrocínio, zona da várzea. Nosso pai era proprietário do bar Jaú, compráramos com esse nome (espécie de peixe) a três quadras do estádio Bento Freitas – Grêmio Esportivo Brasil (Xavante). No meio da quadra situava-se uma das mais concorridas casas noturnas: “Mil e uma Noites”. Segundo comentava-se, o cabaré, além de dispor de mulheres atraentes, possibilitava a dançarinos demonstrarem sua habilidade. Tangos e boleros embalavam madrugadas e amantes, inspirados em estimulantes alcoólicos e entorpecidos na fumaça de cigarros. Respeitáveis cidadãos, de conduta “ilibada” bebiam o néctar da juventude nos lábios de atraentes ninfetas. Ouvimos afirmar que o lugar possibilitava aos jovens mostrar que já eram homens, e aos velhos, que ainda o eram.
Tentando saciar a infantil curiosidade, prontificamo-nos, algumas vezes, a levar leite, pão, manteiga, geleia e cigarros às “damas da noite”. Numa dessas oportunidades, entramos sem bater à porta, e deparamo-nos com três moças que, indiferentes à nossa presença, descansavam em trajes sumários. Pensamos ter cometido um desrespeito. Temendo punição, somente meses depois informamos o que havia acontecido. Papai olhou-nos sorrateiramente: o silêncio foi mais forte que as palavras.
Dentre as “ilustres” figuras que frequentavam a chamada zona da “várzea”, impunha-se a folclórica e belicosa presença de um cidadão conhecido como Pinóquio. Assíduo ocupante de celas carcerárias, vestido à semelhança do lendário justiceiro “Zorro”. Estrábico, levava, constantemente, intranquilidade aos preservadores da ordem. A plêiade enriquecia-se com “Casacão”, “Vilmar da Solange” e tantos outros. Tiroteios não eram raros. A presença de autoridades policiais já se tornara tão comum que não mais despertava atenção. O carnaval, as festas juninas, natal e ano-novo estreitavam os vínculos comunitários.
Morrera uma vizinha. A idade avançada, a debilidade física e tumores cancerígenos limitaram seus dias. Repetiam as habituais expressões: “coitada, estava sofrendo, descansou!”. Jamais fizera mal a alguém! Mas um dia... todos nós iremos: aqui estamos apenas de passagem! Palavras de consolo que não minimizam o sofrimento alheio, contudo, fazem parte da tradição.
Mesmo que não fosse de nosso relacionamento, a solidariedade e talvez a curiosidade fizeram com que comparecêssemos ao velório. À época, o infausto, salvo dentre os que possuíssem condições favoráveis, realizava-se em casa, com frequência em recatadas salas de visitas. Os abastados valiam-se de salões nobres, entidades filantrópicas ou de prédios públicos. Quando na residência, sob luzes da pompa, anunciava-se à porta, o féretro, através de uma mãozinha metálica da qual pendia um pequeno lenço de seda em cor lilás ou preta.
Nas cidades interioranas, durante a cerimônia, servia-se café, pão caseiro, bolo frito e até refeições à base de massas e carnes. Os familiares mais idosos e/ou mais íntimos externavam o pesar ostentando uma faixa de crepe, braçadeira, também conhecida por fumo, em cor preta, por até seis meses.
As viúvas cobriam-se de luto por inteiro. Ficavam nesse recolhimento, às vezes, durante anos, não se permitindo nem mesmo sorrir espontaneamente ou deixar escapar uma imprecação. Posteriormente, passavam a usar roupas cinza e a discrição era generalizada. Privavam-se de festas, usavam óculos com lentes escuras, mantinham o cabelo preso, chamado de coque ou, como mamãe dizia, “buque”. Por vezes, eram cobertos com lenços pretos, sorriam comedidamente e reverenciavam os mortos com citações nos ofícios católicos. Demoradas visitas aos cemitérios inspiravam preces que evolavam na fumaça das velas. Há quem afirme, com índices significativos, que os velórios propiciam o reencontro de velhos amigos, alguns até tidos e havidos como mortos. Quem sabe, prenunciam os momentos derradeiros.
Voltemos. Chegara a hora do corpo ser levado à realização das cerimônias finais. Tinha-se por hábito usar o verbo “enterrar”. Templos fúnebres, requintados mausoléus, confeccionados em mármore que vinham da Itália abrigavam famílias abonadas. Pedras artisticamente grafadas expunham em prosa e versos sentimentos de perda e de saudade. Algumas citações provocavam reflexões, outras, despertavam riso e muitas, subjetivamente, confessavam deslizes no comportamento ético e até moral. As peças em metal eram alvos constantes de vândalos e ladrões que dilapidavam as urnas mortuárias à procura de joias. Os adornos, as letras das inscrições, em cobre, eram vendidos por preços irrisório a fundições.
Os tempos mudaram. Com eles tudo mudou. Surgiram os cemitérios ecumênicos e crematórios. Ricos e pobres são enclausurados em nichos sobrepostos (lóculos). Continuamos, mesmo sem terra, “enterrando”. Quem sabe o mais indicado seja “engavetando”. O número de ramalhetes, pendentes nos cravos, permite inferir a influência de quem deixou o plano terreno.
Nos centros maiores, os crematórios vão conquistando adeptos. Mesmo que as despesas sejam mais expressivas, a alternativa oferece vantagens. Dependendo das condições econômicas e da linha ideológica, alguns jamais permitirão a extinção nos fornos: tem-se a impressão de que os corpos, mesmo sem vida, estão mais próximos de nós se estiverem nos caixões.
Limitaram-se as atividades dos limpadores de pedras tumulares, capinas, pinturas (caiação), lavação e reformas. Em número reduzido, são encontrados em cemitérios da zona rural.
A consternação tomara conta, não só dos familiares, como também de todos que conheceram a bondosa senhora. O filho mais velho, encarregado das exéquias, procurava distribuir nos veículos aqueles que acompanhariam o corpo à derradeira morada. Flores simples, colhidas nos jardins caseiros, adornavam o interior do caixão.
Maria, embora criança, contava em participar do cortejo. Certamente, muito mais pelo passeio de carro do que pela funesta solidariedade. Quando soube que não fora convidada, não se conteve. Dirigiu-se a um dos familiares e vociferou:
– “Não sobrou lugar pra mim, né? Pois quando morrer alguém lá em casa, nenhum de vocês será convidado”.
As fisionomias, mesmo as mais contristadas, não se contiveram e trocaram o silêncio, o recolhimento, por expressões de riso, abafado pelos lenços. Maria, mais uma vez, conseguira notoriedade.
Jorge Moraes - março 2016 - jorgemoraes_pel@hotmail.com