Moçada, vocês não foram pra fila do leite...

Belém, 14 de março de 2016.

Caríssimos,

Na estrada do Jari estávamos Marcos Silva e eu, num lutar para chegar a tempo do voo, na BR 156 que liga Laranjal do Jari a Macapá, em época de lama, única via de acesso terrestre para a capital do Estado. Eram dias em que não se sabia muito do mundo, vindos da missão de moderar a 2ª oficina de plano de uso dos recursos naturais na comunidade Repartimento dos Pilões, isolados da internet e da televisão aberta, que tanto interferem na realidade local .

Do pouco que vimos, olhamos rapidamente a TV do pequeno restaurante de beira da estrada que sobrevive graças aos viajantes que por ali passam diariamente, bem distantes do eixo rio-são Paulo. Na programação, percebemos o quanto o país soluçava um protesto convidado e orquestrado a meses pelos mesmos partidos e mídia que por décadas abandonaram e saquearam a população e que hoje se dizem puritanos.

Lá.

Hora de voltar para a estrada, pois o tempo passa e as horas do retorno à Belém se aproximam.

Tanto nas ruas de Laranjal do Jari, quanto nas vilas remotas da estrada, nas casas ribeiras da reserva extrativista, quase nada se comentava, apenas os olhares, caladas gentes que não entendiam tantos detalhes das passeatas feitas por mentes andantes coercitivamente pela imprensa nas avenidas centrais das grandes capitais.

Na BR 156, desenhamos um estado de alerta do que poderia ocorrer quando saíssemos dela, meio amalucado, bem verdade, mas um bom exercício para que o tempo encurtasse o caminho enlameado e de piçarra que seguíamos na BR156. “Já pensou chegar em Macapá e ver a presidenta deposta? O Lula preso? O Vice Michel Temer assumindo?”. O caos instalado não deixaria de ser. O Brasil de bandeja para A Prostituta, o PMDB, o chiqueiro maior dos porcos.

Na viagem mental feita, imaginamos que a primeira vitória do Neo-Tenentismo, logo traria uma segunda, retirando do jogo o mesmo PMDB. Apoiados pela mídia como verdadeiros salvadores, dariam as cartas em nome da manutenção do Status Quo social e econômico. À medida em que envelheceriam, aumentariam seu conservadorismo, pois o bom esquerdista fica cada vez mais à esquerda, o bom direitista sonha em ser um exemplo do lado que defende, um ultra-direita estilo Charlton Heston. Com uma super-Globo, alimentada pelo dinheiro público e livradas suas dívidas junto à Receita Federal, tornam-se praticamente intocáveis. O pseudo-governo instalado retira os direitos dos movimentos sociais, cassando seus CNPJs ao menor deslize nas obrigações de tributação e apresentação de suas declarações de isenção. Trava-se e até fazem sucumbir a CONAB, reinaugurando a hegemonia do Agronegócio, cada vez mais tecnológica graças a Embrapa, estrategicamente direcionada a lançar teses e artigos acadêmicos em seu favor, em detrimento de uma agricultura familiar e agroextrativista agora alegórica, só para politicamente dizer que existe no país, porém inócua para enfrentar de igual para igual os transgênicos. Os casos de câncer triplicam.

Os direitos das populações tradicionais são cinicamente desqualificados, engessando a regularização fundiária e diminuindo decreto após decreto as áreas indígenas e quilombolas. O sistema REDD ganha espaço na pauta do ministério do meio ambiente, coordenado segundo os humores da bolsa de valores de Wall Street, cujos tomadores de decisão empurram diretrizes para o uso das reservas extrativistas e demais modalidades de uso coletivo. Quem desmata para plantar é preso. Mas não lhes chega o aparato científico necessário para uma roça sem queima. Para cada criminoso desta natureza segundo as leis vigentes, uma empresa se colocaria naquele lugar, a disposição para gerenciar aquela floresta e receber os royalties sobre a dita boa gestão florestal. A agricultura familiar e agroextrativista vira espécie em extinção.

Novas hidrelétricas são impostas para as principais quedas d´água na Amazônia. Uma nova onda de empreiteiras surge, tributavelmente perfeitas, mas ambientalmente negligentes. A matriz solar e eólica é altamente taxada para desestimular a autonomia energética das famílias, seja na cidade, seja no campo. As populações tradicionais reagem, o exército e a Força Nacional agem juntas para coibir, prender e matar de maneira não intencional lideranças que defendem o local dos grandes projetos.

Os antigos Neo-tenentes sábios não conseguem lidar com a revolta popular amazônica, cujos filhos dos Bolsa-Família são os mais aguerridos, somados aos netos dos quilombolas, indígenas e agroextrativistas destituídos de suas terras de origem, estudados e conscientizados que foram por lerem de forma criminosa e subversiva: livros!

A Amazônia clama por ser finalmente liberta.

“Eh, Rapá, acorda!! Já chegamos no asfalto da BR, logo ali é Macapá.”.

Uma baita dor de cabeça me fica o resto da viagem. "Uffa!! Ainda bem que foi apenas um sonho, quanto tempo eu dormi?”.

“Quase uma hora!”.

Enfim, no aeroporto rumo a Belém, nas redes sociais, vimos Aécio Neves sendo erguido por seus apoiadores e logo depois, convidado a se retirar. Diferentemente de 1964, desgraçou a marcha de março com uma piada melancólica. “Até quem convidava pra manifestação foi expulso”.

A Globo tocou Legião Urbana no Faustão. Sem Renato, entretanto, não teve sentido. Afinal, a verdadeira Legião, segundo o poeta, somos nós! Os lascados! Sem isso, tais passeatas são meros passeios de paus de selfie.

Moçada da Paulista, vocês nem foram pra fila do leite...

Não imaginam o que é ir às ruas durante a Ditadura Militar pedir liberdade. Loucos os que pedem a volta da ditadura.

Muitos morreram para que dias como estes fossem possíveis. Sabem de nada-mentes não tão inocentes.

Viva Zumbi! Carlos Marighuela! Dandara! Chico Mendes!

Sabemos que foi ruim, mas assim mesmo, Viva a Fila do Leite!

Nos conscientizou.