A vizinha

 
Quando Dona Maria me chamou, tinha certeza que era para pedir duas colheres de pó de café emprestado. Não sei porque, talvez devido há tanto tempo sendo vizinhas, posso afirmar que sei o que ela quer, conforme for o seu tom de voz. Por exemplo: quando ela precisa de açúcar a voz é fanhosa; quando quer pó de café ela emite um grito rápido e seco; se for uma xícara de arroz ou de feijão, não sei porque, mas sinto tristeza em sua voz.
É difícil de explicar, é preciso sentir. Talvez por isso, só eu consigo decifrar os seus chamados. Afinal somos vizinhas há muitos anos.
   Sinto uma alegria imensa quando reconheço o grito dela para devolver os produtos emprestados. Afinal, o custo de vida me atinge também. Nós nos damos muito bem, apesar de algumas divergências. Ela vê novela demais, pode uma coisa dessas?
Poucas vezes recorri aos seus préstimos. Coitada, o marido ganha tão pouco e ainda por cima a família é grande. Cinco filhos! Talvez seja mesmo bom ela continuar vendo novelas; quem sabe assim não arranja mais filhos. Meu companheiro também não ganha grande coisa, mas, como somos apenas dois e não pagamos aluguel, fica mais fácil. E olha que não gosto muito de televisão. Bem que eu gostaria de ter uma filha, ou filho, mas ele vive dizendo que não quer pôr filho no mundo para sofrer. O jeito é ir evitando como pode, mas um dia destes, erro a tabela, esqueço de tomar a pílula e ele vai ter de aceitar. Ele tem bom coração, acaba gostando. No mais, filhos só trazem alegrias.
  Nas poucas vezes em que fui pedir alguma coisa emprestada da Dona Maria, digo sinceramente, foi para fazê-la feliz em poder retribuir os meus préstimos. Mas, muitas vezes não deu certo, isto a fazia infeliz, pois, nem sempre tinha como retribuir. Isto me diminuía, me sentia culpada por ter, bem ou mal, alguma coisa para comer, enquanto ela passava por necessidades. Graças a Deus, que em minha casa o de comer não tem faltado.
Aliás, muitas vezes a minha vizinha nem devolvia as mercadorias emprestadas. Como conhecia os seus apertos, fingia esquecer. De fato não fazia questão e até me sentia feliz em poder ajudá-la. Meu companheiro sempre dizia que deveríamos ser solidários.
  Mas, outro dia Dona Maria me chamou pelo muro, como sempre, e não consegui decifrar o que ela queria. Ela estava com a voz embargada, dizia coisas confusas. Pedi para que entrasse, para conversarmos.
    Entrou e me abraçou, chorando.
  - Júlia, minha amiga, não sei o que fazer, meu marido sempre foi trabalhador; nunca teve medo de serviço; não faltava; não atrasava, mas, está ficando velho e fraco e logo agora foi demitido. Estou desesperada.
   -  Mas o que motivou a demissão dele?
 - Disseram que não precisam mais do trabalho dele. O encarregado disse que a produção dele caiu.
  - Filhos da puta! Ele deu toda a sua juventude enriquecendo aqueles exploradores e agora é jogado no olho da rua sem mais nem menos! Como uma mercadoria, como um objeto que se usa e joga fora. É isto, o trabalhador acaba com a saúde, com a juventude, dando lucro a estes capitalistas sem vergonhas, depois demitem, alegando que a produção caiu! Então é assim que tratam um ser humano?
  - E pelo visto – dizia minha vizinha soluçando – vai ser difícil encontrar outro emprego.
  - Não Maria, isto não pode continuar assim. Isto é apenas um exemplo do que acontece com a maioria do povo. A exploração é uma coisa horrorosa.
  - Mas, o que nós, fracas criaturas, podemos fazer? Eles são ricos e poderosos.
  - Podemos fazer muita coisa, sim senhora! Depois de todas essas greves eu passei a pensar umas coisas. Se não houvesse tanta ambição e se as riquezas fossem bem distribuídas, ninguém passaria fome, nem humilhação.
    - Não estou entendendo nada, Júlia.
    - Outra hora eu explico. Venha, vamos entrar.
    Entrei, conduzindo minha vizinha pelo braço. Preparei um café forte para ela e pedi que tivesse paciência. Disse, ainda, algumas palavras de conforto e que fome eles não passariam, a gente dava um jeito. Na impossibilidade de dividirmos as riquezas, a gente ia dividindo as misérias. Quanto ao aluguel e as crianças, tudo se arranjaria, até aparecer outro emprego.
     Depois de conversar bastante, consegui acalmá-la. Disse-lhe que só tínhamos um caminho: lutar, lutar, lutar, para construirmos uma sociedade melhor, livre da exploração capitalista.
   Nesta noite não consegui dormir quase nada. Permaneci acordada, pensando nas palavras do meu marido, de que a “a riqueza de poucos era a miséria de muitos”.





Cônica publicada no Jornal O Companheiro em 1980. Integra o livro Crônicas do Cotidiano Popular - Edição do Autor - 2006 - 

Como o gênero propõe, esta crônica é um retrato fiel daqueles anos difíceis. Hoje esta realidade mudou.

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Imagem: www.cinezencultural.com.br