Assim ou...nem tanto 36
O sonho
Ainda se faziam valer os ventos frios mas Março trazia já relva macia, as flores amarelas do trevo, sol mais generoso e descobria a encosta da serra numa vertigem que galgava a ribeira brava, as placas polidas de xisto e acabava a perder de vista nas copas dos castanheiros de um verde castigado e indefinido. Sair da azenha para o ar puro e deixar que o corpo descansasse no negro lastro da lousa a escutar a rabuja das águas que, cheias ainda da origem, vinham, cristalinas, ao bulício da manhã, parecia destino para gente privilegiada. O inverno isolava a aldeia gelando os caminhos, aumentando a força dos nevões, retendo o gado na loja. Ficar era mais seguro e mais confortável. Acendia-se a lareira com fogo de pouca lenha e o vento acudia aos portais de pedra, impondo respeito. Nos rigores mais ásperos descia o homem para junto das cabras e, misturava-se ao cheiro da palha bafejada e quente. Muitas vezes nem a manta de lã o separava dos animais por ser mais valioso o calor que a diferença. Mas agora estavam macios os dias e a tasca voltara a ter legumes, fruta, carne fresca. A primavera, anunciada pela passarada, já pontilhava de cor os caminhos e as neblinas morriam a meio da manhã. Recuperava o homem de silêncios e solidão, de tantos dias gastos a contar horas, a desfilar pensamentos, a morder as raivas. Liberdade seria esquecer-se de tudo, descer para o povoado, beber dois copos de tinto como um estrangeiro que ali passasse por acaso, fingir que nem via os velhos e a Maria e, sem nunca olhar para trás, chegar a um mundo luminoso onde teria o seu lugar à espera. Sentar-se no conforto, estender os braços e ditar as diferenças sem contestação. Hoje, porém, por causa do gado, não calhava. Seria bom no verão.