Presente de aniversário
Há dois, talvez três anos, e também um dia após seu aniversário, a Eliane tinha pedido às suas amigas (e amigos), como presente de aniversário, que cada um (a) escrevesse para ela um resumo de suas próprias vidas com destaque para as interações de amizade entre elas.
Tanto quanto sei, ninguém aceitou o desafio. Mas ela sim, topou. Sei que será uma tremenda surpresa para ela, mas estou postando e compartilhando na página dela do ‘face’ esse texto. E para que esse depoimento tenha vida longa estou acolhendo-o também na minha página do Recanto das Letras, porque, em primeiro lugar sua releitura me emocionou; segundo, porque tenho orgulho da sua lúcida inteligência e, terceiro, porque ela escreve bem como uma danada! Aí vai, com meu beijo carinhoso:
“Quanto ao meu pedido de presente de aniversário, a Cristiane disse que seria humanamente impossível atendê-lo. Coloquei-me nos seus lugares e pensei no que escreveria caso fosse eu a presentear uma aniversariante, se me fosse feito o mesmo pedido. Pirei. Afinal a nossa vida é feita de uma soma de poemas, contos, crônicas, músicas, fatos e fotos. Cada um na sua medida e no seu tempo; com maior ou menor importância fez parte da nossa estória. Aceitei o desafio e tomei para mim a mesma tarefa. Mergulhando no passado, me vi perguntando quando comecei a me dar conta de mim mesma. Eu enquanto inserida num contexto maior que o mundo acalentador da família.
Comigo acho que o processo se iniciou com a Revolução Cubana (1959).
A Revolução Cubana foi apresentada para mim no Grupo Escolar por meio de panfletos, creio que financiados pela CIA, contando dos horrores do Comunismo.
Acho que foi a primeira vez que ouvi esta palavra. E o que ela significava naquele momento é que nos países comunistas todos se vestiam de forma igual. Aqueles homens de farda – iguais, de barba – me trouxe a ideia romântica de que todos precisaríamos ser... iguais. Não havia fome, nem miséria. O tempo passou, mas A Ilha ficaria por muito tempo marcada na minha memória. O segundo choque cultural veio com a eclosão da guerra do Vietnã (1959 a 1975). Mais precisamente no seu apogeu, pelos idos dos anos 60/70. Acho que aqui me tornei antiamericana. E quem não era americano era comunista. Que seja. Papai vivia dizendo: não tá feliz? Vá catar cana em Cuba. Somados a esses acontecimentos políticos, os movimentos sociais foram ganhando força: Black Power, o feminismo de Betty Friedmann, a revolução de 68 na França e o surgimento dos grandes filósofos e pensadores modernos. Destaco aqui, Bertrand Russel, o filósofo inglês de quem sou fã de carteirinha, Sarte e Simone (o fato de eu não ter me casado deveu-se a este casal). Os trajes também revolucionaram: A moda subiu a saia e alongou os cabelos. E viramos todos hippies.
Nunca fui ativamente hippie. Mas a sua filosofia me encantava. Paz e Amor, mochila e a calça Lee que todo mundo usava para ficar diferente e igual a todo mundo. A ordem era não ditar ordem nenhuma. Era transgredir na base do Paz e Amor. No cinema um filme que marcou muito essa época foi Amargo Regresso com Jane Fonda e, obviamente, Apocalipse Now. E Hair. Clássicos imorredouros. Esses conhecimentos tão retumbantes foram se entranhando em mim e moldando meu modo de pensar pelos 20 anos seguintes, pelo menos. Os horrores das guerras, a falta de solidariedade para com os povos africanos – na época Biafra e os absurdos das discriminações, sejam de judeus, negros, mulheres, pobres, enfim de minorias que, por mais paradoxal que possa parecer, são sempre maiorias. Aqui virei socialista.
Mas, enquanto o mundo morria (e renascia) surgia o maior fenômeno musical de todos os tempos: The Beatles.
Sobre os Beatles não se escreve. Pois Beatles é uma filosofia. É um estado de glória. Aqui toda uma geração se moldou em AB and BB - antes Beatles e ‘before’ Beatles.
Gostar dos Beatles exigia uma mudança de paradigma. Eles foram realmente o máximo, ‘the best’. Escancararam o que hoje chamamos de liberdade. Tenho paixão por eles até hoje. E continuo acreditando que, sim, eles estão cantando cada vez melhor. Ainda mantenho todos seus discos. Chorei muito e achei que meu mundo tinha acabado ali. E de fato acabou um pouco com a morte efetiva de Jonh Lennon e Rex Harrison.
O primeiro livro que comprei foi Poesias Completas de Vinicius de Moraes. Tenho até hoje. Tinha 17 anos e o ano era 1967. Nunca mais me desgrudei dele. Vinicius marcaria para sempre minha vida. Li e reli Operário em Construção. Mas eis que a Realidade, a revista, entrou, como um bólido na minha vida.
Realidade. Eu era uma garota do interior, ansiando por novos ares e eis que cai em minhas mãos o que considero até hoje a melhor revista editada nesse pais: Realidade.
REALIDADE. Foi uma revolução editorial. Até então, revista nenhuma ousara editar temas tão polêmicos como sexo, drogas e rock and roll. Uma capa com fotografia frontal de um parto natural. Uau! era tudo que precisávamos para arregaçar com os padrões com os quais não nos identificávamos mais. Adorava suas capas instigantes, polêmicas e corajosas. Seus repórteres ousados, extremamente cultos, e realmente vinculados com uma geração. Lembro bem do Hamilton Ribeiro que
escancarou a guerra do Vietnã para nós. Fazia coleção dessa revista e até bem pouco tempo tinha todas elas. (Algumas foram destruídas pelo alienado do meu irmão, para fazer trabalho escolar). Enquanto durou a revista, ou pelo menos os melhores anos dela, de 1967 a 1969, comprei-as todas. Bem, aqui eu me fiz. Pois todas as revoluções do mundo eram denunciadas pela revista. E tinha O Pasquim, o Movimento e o Em Tempo. Obviamente todos marginais, diria que escrachadamente marginais, particularmente o Pasquim.
O Pasquim contava com a colaboração dos maiores intelectuais (de esquerda) da época. Intelectuais e ousados, pois o jornal foi lançado seis meses após a decretação do AI 5 em 1968. Haja coragem e ousadia. O Pasquim também mudaria a ótica de se analisar o tumulto daquela época. Estava tudo ali, em linguagem cifrada, oculta (menos a entrevista da Leila Diniz) cheia de asteriscos. E dá-lhe esquerda. Juntamente com a fase escrita, contribuiu a fase musical. Como não citar os grandes festivais de música popular brasileira.
O que mais me impressionou foi o 3º em 1967. Suas músicas renovadoras, suas letras ousadas. Ganhou Ponteio, mas Alegria, Alegria foi a grande alegria do festival. Chico já era o maior porta-voz dos anos de chumbo que se anunciavam. E Caetano arrebatou com a Tropicália. Estava criada uma nova escola musical. Perderíamos os dois para a Itália e Inglaterra. Felizmente por pouco tempo. E Henfil, não posso deixar Henfil esquecido. Seu traço inconfundível, sua crítica mordaz, ferina. E sonhamos com suas voltas. Nós o perdemos para a Aids. Assunto para bem mais tarde. Mas a grande vedete desses anos foi, hors concours, a pílula anticoncepcional.
Imaginem quatro garotas morando perto da USP e do Mackenzie, ali na Maria Antonia amando Beatles e Rolling Stones - eu mais Beatles - e cursando Sociologia na USP. Em sã consciência mulher nenhuma da minha geração poderá indicar descoberta mais importante do que a pílula anticoncepcional para a derradeira ruptura com todos valores morais e comportamentais que a pílula tornou possível. Hoje, profissionais de variadas áreas, psicólogos, cientistas sociais, psiquiatras, educadores, todos são unânimes em afirmar que a Revolução Sexual, proporcionada pela descoberta da pílula foi o grande marco do século XX. Ela definitivamente transformou todos os paradigmas tanto comportamentais como educacionais. Abalou as relações familiares, transformou a estrutura doméstica, o jogo de subordinação, a luta de classes...Uau! e agora, José? Agora vamos à luta.
Tenho memória de algumas pessoas muito importantes na minha vida: Dulce Whitakher uma professora que me ensinou a ver o mundo como ele é. Cristina, uma amiga que me mostrou que mulher pode ser inteligente, sim. E culta. Coisas desprezíveis na época. E que podíamos, sim, sentir prazer. O prazer foi ‘descoberto’ com o Relatório Shere Hite. Extremamente científico. Um calhamaço de perguntas e respostas. E que provou que mulher, pasmem, sente prazer sexual, que não necessariamente é via penetração, que adoramos preliminares...
Prazer. Sexo. Como expressar isso sem que nos olhassem de soslaio e até com desprezo? Mulher de família jamais tocava nesse assunto Como falar em vagina, clitóris, tesão, orgasmo. Pênis duro, pênis mole. Paixão. Paixão é paixão, amor é amor. Sexo sem amor. Que, independente de ponto G, a gente não quer só casar, a gente quer mais do que isso. E quem revelou tudo isso, no meio da nossa sala, sem pedir licença nenhuma ? Uma intelectual burguesa, formada em psicologia pela PUC com pós graduação pela Universidade de Stanford. Uma mulher briguenta que ousou escancarar nossos valores e expor todas nossas querências. Ela ancorava um programa na TV Globo, TV Mulher que respondia cartas de jovens com grandes dificuldades de comunicação sobre?... Sexo. Quem? Marta Suplicy (por favor, esqueçam o ranço político). Foi um Deus nos acuda. A ponto de as Senhoras de Santana tanto fazerem que o programa saiu do ar. Mas o recado estava dado e suas conquistas irreversíveis. Mas o que seria do ‘sexo didático’ de Marta sem o esculacho de Rita Lee? Sabendo que não havia pecado do lado debaixo do Equador, ela mandou a gente ficar de quatro no ato e fazer amor por telepatia. Pronto o sexo estava curado de todas as culpas.
Juntamente com essa revolução sexual e comportamental a política veio devagarzinho entrando na minha vida. Quem me deu um alô nesse sentido foi minha ‘comadre’ Marisa. Ela era do PCdoB. Trabalhávamos juntas no Banco do Brasil, agência centro. Nós nos reuníamos no Sindicato dos Bancários, ainda no centro da cidade. Era um sindicato pelego, como o chamávamos, cujo presidente era imposto pelo governo. As reuniões eram rápidas, sempre com um ‘olheiro’; nem cadeiras havia. Na sede, quando conseguíamos, assistíamos os filmes vetados pela ditadura: O Encouraçado Potenkin de Eisenstein, Z de Costa Gavras. Todos proibidos. Mas o pessoal da ‘esquerda’ sempre achava uma cópia aqui e ali. E assim a gente ia se ‘construindo’. Eram debates, reuniões clandestinas, e muitas, muitas discussões sobre como mudar esse mundo burguês e permitir que todos pudessem ser felizes para sempre. E a gente acreditava nisso piamente. E enquanto a polícia endurecia, o caldeirão ia fervendo. E dá-lhe Chico Buarque de Holanda.
O Chico (adoro essa intimidade) sempre fez parte do meu imaginário. Eu realmente sempre fui apaixonada por ele. E não me venha com amor platônico que era tesão mesmo e, sinto dizer, desde a Banda, em l966. Desde então nunca mais me desgrudei dele. Acompanhei seus passos. Suas composições, suas letras, sua vida, tal como tiete deslumbrada. E eu era real e absolutamente deslumbrada por ele. Tinha todos seus discos. Quando foi lançado Calabar, o elogio da traição, baseado na peça homônima, em 1.973 ambas foram proibidas e o disco recolhido das lojas. Fiz das tripas coração e consegui comprá-lo a peso de ouro de uma garota que sabia que se não me vendesse eu a mataria... tenho todos até hoje. Muitas pessoas perguntam: porque Chico? Bem eu acho que a resposta é de uma simplicidade incrível. Ele navegou por todas as águas da nossa história. Fez músicas românticas, sensuais, politizadas, instigadoras, delatoras, escrachadas, e todas perfeitas. Ele sabia falar o que queríamos ouvir: desde uma mulher desesperada pela perda do filho raptado, torturado e morto pelo Dops, até a moça na janela vendo o tempo passar. E falou com ternura, simplicidade, irado, mas sempre, sempre com perfeição, ele merece um vasto capítulo que não se encerra. Nós o amávamos, pois numa briga de mocinho e bandido a gente sabia que ele ganharia. Nem que fosse como Julinho da Adelaide... Felizmente, são muitos os autores de extrema competência que escrevem e escreveram sobre ele. Se Millôr Fernandes o considerou unanimidade nacional, quem sou eu para contestar?
Para mim ele continua único.
Outro grande marco da minha vida foi ter trabalhado na agência do Banco do Brasil da Avenida Paulista, onde eu travei as mais ferrenhas lutas sindicais, conheci as pessoas mais incríveis: poetas, escritores, dentistas, sociólogos. Pessoas ousadas, transgressoras, conservadoras. Gays, lésbicas. Mães solteiras, separadas, solteirões, nordestinos, nortistas, sulistas, interioranos. Nisseis, sanseis, judeus, alemães, árabes, chineses. Todas elas, de uma forma ou outra, fizeram parte da minha formação humanística. Ensinaram-me a viver com os diferentes. Respeitar as idiossincrasias de cada um. Foi uma vida que se confunde com a minha evolução enquanto ser humano.
Hoje sei que posso dizer aos meus netos que fiz, junto com meus amigos, parte da História do Brasil. E acrescento: o Luiz, meu companheiro de tantas lutas, é um capítulo muito particular nessa história. Sei que teve muito mais, mas a história nunca é definitiva.
Obrigada pelos presentes. E estamos sempre ai. Sintam-se beijados”