PERDOANDO DEUS

Esse desabafo demorou muito para acontecer. Padeceu no silêncio a dor da espera. Dá medo falar de Deus. Aprendi que Ele é bom, amável e que parece não gostar muito de ser questionado. Ou pelo ou menos seus partidários não gostam de irritá-lo com perguntas. O maior crime para o fundamentalista não é o pecado, mas a dúvida.

Quem diz conhecê-lo tem medo de ser pego de calça curta. O fanático repousa tranquilo nas certezas que tem. Ele não dialoga, discursa. Em nome do que pensa saber, sente-se no direito e, no dever, em alguns casos, de fazer o que é o correto (segundo ele). Ainda que outrem seja lesado. Houve um tempo em que fui assim e me envergonho disso. Mas antes de ser um imbecil, fui vítima de outro. Quando ainda era criança. Aparentemente não foi nada demais. Um guimba de cigarro aceso, lançado sobre a desventura de folhas secas.

Indo ao fato.

Meu principal passatempo na infância era assistir os desenhos animados da parte matutina do dia e aos seriados japoneses – os chamados tokusatsu – que no Brasil eram transmitidos pela extinta TV Manchete. De todos meu preferido eram os Cybercops, os Policiais do Futuro. Como o próprio nome já conta, os personagens da série faziam parte de uma unidade de polícia especial que contava com recursos avançados de combate. Nada muito original ou diferente dos demais produtos desse formato. E por razões que eu desconheço, era o que eu mais devotava atenção e espera. Depois de um tempo assistir aos Cybercops já tinha deixado de ser um mero entretenimento e passado à rito sacro. Uma parte do dia que fazia o dia ser melhor. Por quê? Não sei. Era assim. Afeto a gente não explica bem; com seis anos de idade, menos ainda. Havia algum mal identificável nisso? Não. Alguma consequência imediata que justificasse a renuncia? Também não.

Mas eis que um ser, munido de suas convicções arbitrarias e demolidoras, disse-me que eu não deveria assistir mais esse tipo de coisa. Disse-me que aquilo não me traria nada de bom. Como não? Se já fazia daquele pedaço de hora a melhor parte do dia. Mas ele falava em nome Deus. Eu tentei debater, justificar a possível inocência da ficção. Quis defender o que para mim era importante e tentar negociar com Deus por meio dos “seus”. Mas o crente era convicto e enérgico com as palavras. Ele tinha maior preocupação em falar da fúria do opositor que da possível complacência do Onipotente. O demônio é o prato preferido do fanático. Com Deus não se amedronta tanto.

Fui censurado por descumprir o primeiro mandamento; que eu nem conhecia. O crente tinha palavras raivosas entre os dentes. Como se quisesse me punir, por eu não estar sob a chibata da opressão. A alegria da liberdade pode ser ofensiva para quem vive preso. Como se não bastasse o sermão gratuito, a coisa ficou ainda pior quando eu disse que o anti-herói do grupo, meu personagem favorito, chamava-se Lúcifer. Suponho que o leitor já consiga imaginar o tamanho da catástrofe que essa informação trouxe a situação. Em nome de Deus o crente amaldiçoou o meu sagrado. Não me tirou nada, mas me deixou o medo. Nunca mais conseguir assistir aos Cybercops do mesmo jeito. Quando assistia, a consciência pesava. Lúcifer era o nome do demônio! Quando abdicava, o coração doía. O crente venceu. O que ele ganhou com isso? Não sei. Acatei o que ele disse com pesar. É difícil ir contra. Dá medo falar de Deus.

Dane-se que meu preferido fosse o Lúcifer. Dane-se seu nome e o que mais eles fizessem. O crente nem sabia. Era só uma palavra. E se alguém me disser que as palavras têm poder, eu digo: tem mesmo. As que eu ouvi em nome de Deus me fizeram um mal imenso.