Assim ou ...nem tanto 35

Palavras

A oração era, na sua boca, uma ladainha sem sentido. Dirigia-se a Deus mas os vocábulos da prece caíam, um a um, em outros pensamentos ou vagueavam ao sabor das imagens mentais que lhe eram mais caras. De repente, uma era a palavra, outra a ideia. Falar – disse o sábio – só quando os olhos não perceberem ou quando os espíritos, desunidos, estiverem longe. No isolamento de cada pessoa, a palavra dita é acolhida com peso, razão e sentido diferentes por nenhuma trazer em si um valor imutável ou absoluto. Não são inúteis, acrescentou o eremita, antes têm poder de vida ou morte, de proscrição. Dito isto voltou a perder o olhar no infinito, endureceu o corpo magro que o vento revelava e voltou à imobilidade do costume como se fosse uma estátua ou uma pedra. Recuou em reverência, depositou a broa e os frutos numa depressão da laje granítica, apertou os dedos para aconchegar a si a camisa e desceu a encosta sem perceber que o cascalho do caminho lhe feria os pés pelas aberturas das sandálias. Então era isso, pensou, só quando o meu espírito estiver em sintonia com Deus vale a oração, só quando conseguir alhear-me de tudo, depurar-me do meu mundo pequeno, valerão as palavras que Lhe disser. Vãs seriam as repetições, inúteis os sons que, saindo da boca se desnorteavam no destino. Só no ouro da conjugação, na sintonia dos espíritos ou do olhar, no saber dizer e no poder compreender se cumpria a mensagem. A melhor delas dispensava a palavra porque, proferi-la, era correr todos os riscos. De carência ou de excesso. Juntar palavras muda-lhes o valor; isolá-las, nem sempre faz com que signifiquem toda a ideia que desejamos transmitir. Dizer ou escrever muito para precisar é como fazer contratos em letrinhas pequenas. De tantas que são não se lêem, se lidas não se entendem mas, em Juízo, todas testemunharão contra nós.