ASSIM SE PESCAM CEFALÓPODES


  Foi no sábado, último dia do horário de verão.
  Anoitecia.
  Sentados num banco do calçadão, eu e minha mulher apreciávamos o mar,
  ...e os banhistas retardatários saindo,
  ...e os barraqueiros desmontando barracas,
  ...​e os surfistas que se encarapitavam nas ondas amenas, já a essa hora esvaziadas de povaréu.
  ​O nordeste soprava discreto, esfriando um pouco mais a mornidão do sol declinante que, ora se cobrindo, ora se descobrindo de nuvens fagueiras, fazia bonito jogo de luz - colorindo, umas vezes de cinza claro, outras vezes de dourado brilhante, os bombordos e borestes de seis ou oito traineiras fundeadas a pouca distância da praia.
  ...(Longe, bem longe, um cargueiro - também fundeado, exibia os mesmos coloridos.)
  Fiquei cismando por que estariam ali aquelas pequenas embarcações, tão próximas da arrebentação, num horário, a meu ver, incomum: "acuando" sardinhas?... Talvez. No entanto, para o leigo (que sou), quando se vão fechando as redes, os peixes "afervoram" as águas, atraindo gaivotas.
  ...Mas não se viam gaivotas!...
  Senti leves respingos frios na perna. Desviei o olhar para o lado, procurando saber a causa. Imediatamente, uma jovem mulher que se aproximara do local munida duma garrafa d'água, e apoiada no guarda-corpo do calçadão iniciara a lavar os pés sujos de areia, dirigiu-se a mim, meio espevitada: "- Pode deixar, eu não vou molhar o senhor!..."
 
(...Realmente, não molhou; só respingou o pouquinho trazido pela brisa.)
  ...Iniciou-se, então, alegre conversação entre nós três. Contou-nos que trabalha na praia há vinte anos como vendedora; trabalha numa escola; trabalha num restaurante; trabalha não sei onde mais, sendo responsável por um grupo de pessoas... - ou seja, exerce múltiplas ocupações.
  ...(É bom, conhecer alguém que luta honestamente pela vida nesta pátria-amada-idolatrada-salve-salve cheia de bolsistas que vivem coçando as virilhas!...)
  ..."- Como você  arranja tempo para dormir?" - pergunto.
  ...Ela apenas sorri. E conta mais: o filho mais velho tem vinte e três anos e trabalha em outro Estado.
  "- Você, então... quantos anos tem?" - indago, curioso.
  "- Trinta e sete!" - diz a simpática personagem negra, sorrindo mais abertamente, demonstrando alegria, demonstrando estar de bem com a vida depois de enfrentar mais um dia na solina intensa. A tiracolo, um rádio portátil, com música alta.
  "- Não consigo ficar sem ouvir música! É o dia inteiro!" - explica.
  Que mais nos conta, a praiana?... Mostra-nos a vareta de bambu que tem às mãos: sim, já muitas vezes quase teve os pés estropiados por espetos de churrasquinho iguais àquele, largados na areia  pelos descuidados banhistas, as pontas agudas lhe entrando debaixo das unhas.
  (...)
  ...(Trinta e sete anos... Mãe aos quatorze!... Batalhando, desde então...)
  (...)
  De repente, ela grita: "- Olha lá! Acenderam a luz! Sabem o que estão fazendo?"
 
(O holofote de uma das traineiras fora aceso, com foco virado para a água.)
  ...("- Pesca de camarão!" - deduzi, sem no entanto expressar-me verbalmente. Lembrei dum amigo que se utiliza de lanterna para pegar tal crustáceo.)
  ..."- Estão pescando lulas!" - esclarece.  "- Usam a luz para atrair os bichinhos, que vão entrando em fila, sempre em fila, do maior para o menor... e quando vão chegando os miúdos, antes que estes entrem, a rede se fecha e é levantada." 
  ...
(A rede, pela descrição feita, é um tipo de puçá.)
  Ficamos, os três, olhando a traineira iluminada.    
 
Não demorou, a segunda traineira também acendeu seu holofote - momento em que a "simpatia ambulante" se despediu, pois tinha compromisso com o grupo de pessoas pelo qual é responsável.
  (...)​
  Minutinhos depois a  terceira traineira se iluminou; mas como interrompêramos nossa caminhada, parando ante a beleza do mar naquele lusco-fusco, resolvemos reiniciá-la, não esperando para ver se todas as barcas se acenderiam.
  (...)
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  Desde então continuei cismando, procurando informações que, afinal, me confundiram cada vez mais.
  Na minha santa leiguice creio que as traineiras (aquela "convenção" de traineiras!) estava tentando "embarcar" o molusco classificado, em 1823, pelo zoólogo Henri-Marie Ducrotay de Blainville, como "Loligo brasiliensis" - quiçá por ser, este indivíduo da família Loliginidae, o que mais "pulula" nas águas costeiras deste país descansado. Não fora isto, o ilustre cientista não o teria distinguido com o sugestivo "brasiliensis", pois não?... (embora, segundo depreendi de informações rápida e precipitadamente obtidas, sua presença ocorra desde a Argentina até a Carolina do Norte, EUA).
  (...)
  Dorytheutis plei, Dorytheutis brasiliensis, Loligo brasiliensis...
 
...Não deixa de ser uma homenagem honrosa!...
  (...)
  Segundo o dicionário Aurélio, a lula é um molusco cefalópode, dibranquiado, decápode (...) coloração amarelada com manchas escarlates (!?), podendo mudar de cor segundo o meio ambiente (!?), provido de dez tentáculos com ventosas, dois dos quais são mais finos e alongados (!?)...
 
Já o Houaiss fala em oito braços e dois tentáculos (!?), e concha interna, formada por uma placa achatada, córnea, conhecida como pena (!?)...
 
(...Hummm! ele tem uma carapaça interna!... Então o bicho não é tão mole quanto o povo... - oh, desculpem! eu quis dizer "quanto o polvo!"...)
  E eis o complemento da parca literatura que encontrei sobre a lula: é o mais evoluído dos moluscos!!!
 
...(e isto me deixa impressionado!)
  (...)
  Desde aquele dia (e só hoje dou a missão como concluída) virei e revirei links e sites que pudessem me esclarecer - seguramente - sobre pescarias de lulas. Não fui capaz de localizar muita coisa: encontrei vídeos com pescadores pegando-as com caniços; com barcos usando uma espécie de gaiola (!) e, outros, uma espécie de cachepô; e sempre (os barcos) em movimento e em alto-mar... 
  ...Assim, a pesca com tantas traineiras, juntas, próximas à arrebentação da praia, deve ser incomum. Seria comum próxima aos costões, isto é, mais além, afastada dos surfistas... mas... que sei eu? Sou leigo.
  (...)
  Pode ser que não exista rede em forma de puçá para pescar lula, tal como a descreveu a querida e multifacetada vendedora;
  ...mas concluo, ainda cismando: a pesca do cefalópode, do molusco mais evoluído entre todos os moluscos; a pesca que pode trazer bons resultados para gaivotas desconfiadas (ou distraídas, ou medrosas...) é essa: com uso de holofotes e cercando-o por todos os lados!
  (...)
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  Loligo brasiliensis...
 
Não deixa de ser honrosa homenagem - apesar da casualidade.
  ...Profecia?...
  (...)
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  Mantenham-se acesos os holofotes!
  ...Que se animem as gaivotas!
  (...)
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  (Postscriptum: "- Que estaria fazendo aquele cargueiro fundeado ao longe: guardando?... aguardando petróleo de preço desbaratado?")


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Mar., 08, 2016.