Reencontro

Eu já estava 5 minutos atrasados e parecia que faltava ainda pelo menos um quilômetro para o prédio principal. Daí para a sala da minha primeira aula, seriam mais alguns corredores e uma ou outra curva na minha própria versão do labirinto do minotauro, ou algo assim. Quando foi que eu comecei a usar esse tipo de referência?

A verdade é que deviam ser pouco mais de duzentos metros de onde eu estava até as pilastras de cor bordô que indicavam a entrada do prédio central da Universidade de Nova York. Dei uma parada, ajeitei os livros nos braços (é, eu devia ter pego aquela mochila que ficou em cima da cama porque eu achei que afinal a aula não era tão longe assim do dormitório), suspirei e resolvi apressar o passo um tanto mais.

No final das contas, se eu já podia distinguir as pilastras e até mesmo a cor da maçaneta da porta principal, então eu estava bem perto, cada vez mais perto, mais alguns segundos e eu estaria... Ouch! Algum idiota desavisado vindo de outra direção esbarrou em mim com a força de 10 elefantes. Parece que eu não era o único atrasado correndo para uma aula naquele prédio, afinal.

Meus livros caíram abertos, no chão duro ladrilhado, se espalhando com a graça de um potro aprendendo a andar momentos após o nascimento. Ou seja, nenhuma graça, se eu não tiver sido óbvio.

Não me dei ao trabalho de olhar quem havia sido o imbecil, mal educado, ignorante e... eu estava pensando em outros adjetivos nada educados (meus pais mandariam eu lavar minha língua com sabão, mas com 19 anos e distante de casa, o que eles poderiam fazer?) quando percebi que a estranha, era uma garota, se abaixou para me ajudar com os livros, balbuciando alguma desculpa e com a pele branca corando como um tomate florescendo no verão.

Eu fiz um gesto com a mão que deveria significar “está tudo bem” para em seguida dedicar-me ao trabalho de recolher os objetos, sem nem olhar na cara da estranha que pelo menos estava tentando ser educada o suficiente para desfazer a besteira. Ei, eu não era mais um garoto de 10 anos e meio, eu não ia me distrair pelo rostinho bonito de qualquer...

- Rosemary!

Ela olhou pra mim quando eu falei seu nome, um pouco mais alto do que eu pretendia, comprovando que ela era exatamente quem eu estava pensando que era.

- Gabe?

Gabe... Sim, Gabe, à exceção de que ninguém, sem contar com meus pais, não me chamava assim desde que eu tinha uns 12 anos e mudei de escola, na transição entre ensino fundamental e ginásio. Se eu parasse para pensar, fazia quase o mesmo número de anos desde que algum amigo havia me chamado de Gabe e desde que eu vira Rosemary pela última vez, no casamento da tia, em pleno Central Park, no mesmo dia (como eu poderia esquecer?) de minha estúpida declaração de amor.

É claro que eu revivi aquele dia e aquele momento quantas vezes pude, em minha própria mente. A cada nova vez, a cada aniversário, conforme eu amadurecia, ficava mais claro que eu não havia feito uma ou duas, mas tudo errado.

Chegar no meio de uma festa de casamento para o qual eu não havia sido convidado, vestindo uma blusa qualquer, um jeans surrado, um tênis sujo, o braço quebrado e, para completar, ensopado em suor fresco. É, eu deveria ter percebido que não era exatamente uma cena romântica me ver chegando ali. Mas pelo menos eu disse o que tinha que dizer (e aprendi o que tinha que aprender, garanto).

Não que àquela altura da minha juventude, eu fosse um Don Juan, conquistador inveterado, mas eu posso prometer que não era mais o completo perdedor sem talento que eu era aos 10 anos de idade, no início do meu trágico aprendizado sobre amor.

“Tudo bem, Gabe. Chega de passado”, eu falei só pra mim.

Eu engoli em seco e olhei de novo para o rosto da, agora, ex-estranha à minha frente. Eu havia parado de recolher os livros, ela também. Ela, que até onde eu lembrava, era mais alta que eu, agora era pelo menos alguns dedos mais baixa.

Seus cabelos estavam mais longos e mais escuros, mas ainda tinham o mesmo tom de mel. Seu rosto era mais fino, mas ainda carregava as mesmas bochechas proeminentes, os mesmo lábios ligeiramente cheios e lá, quase no topo daquele rosto tão lindo, estavam os mesmos olhos grandes, azuis, profundos, exatamente como eu lembrava.

Eu sorri involuntariamente pensando que eu poderia ter visto Rosemary ainda ontem, ela parecia tanto a mesma. Peguei-me imaginando o que ela estaria vendo ao olhar meu rosto pálido, de queixo quadrado. Será que eu ainda tinha os mesmos lábios finos? Os mesmos olhos opacos e o mesmo cabelo preto e fino que se moldava ao formato do topo da minha cabeça? Será que eu ainda tinha algo daquele menino que se declarou para uma menina de 11 anos em um casamento que ele estava invadindo?

Ela sorriu de volta e logo estávamos rindo, como as duas crianças sem nenhuma ideia do mundo, saindo da aula de caratê. Eu não sei sobre ela, mas eu era, naquele momento, apenas o Gabe de sempre, ou pelo menos daquelas duas semanas e meia que eu compartilhei com meu primeiro amor, nas avenidas de Manhattan.

Não é como se minha vida não tivesse passado desde então. Claro que eu cresci, segui com a minha vida, fiz amigos, tive namoradas, não me tornei nenhum jogador de futebol famoso (desisti por volta dos 16 anos quando descobri o jornalismo), aprendi coisas novas, esqueci coisas antigas.

Nós dois nos sentamos no banco perto da porta, completamente esquecidos de qualquer aula em que devêssemos estar, eu, pelo menos. Ali, naquele banco, conversando sobre os últimos 8 ou 9 anos, sobre o acampamento ao qual ela de fato foi, sobre o ginásio na escola particular e o ginásio na escola pública, era óbvio que ela era uma das coisas antigas que eu não havia esquecido. Não que eu tivesse tentado, para quê, afinal?

Sentados no banco, parecíamos as crianças que se despediram sem dizer adeus, com todo o peso dos anos nos ombros. Eu queria saber como tinha sido a vida dela até ali, ela queria saber sobre a minha, ambos queríamos contar e saber que feliz coincidência havia nos feito esbarrar naquele prédio.

Falei pra ela sobre como meus pais haviam voltado a ficar juntos depois do meu colapso sentimental, ela dividiu comigo a notícia (nova para mim) do falecimento do pai dela, cerca de dois anos antes. Contei como Ralph, do meu prédio, acabou se casando com a au pair do 3G, para surpresa de todos, sem brincadeira. Ela me contou que a babá, Birdie, ainda cuidava da irmã menor dela.

Eu não tinha, ou não queria ter, lugar nenhum onde eu deveria estar naquele momento. Era tão bom vê-la de novo, ela estava tão diferente e, de tantas formas possíveis, era a mesma garota da qual eu me lembrava.

Eu a visualizei em seu vestido cor lavanda de daminha de honra, com a tiara de flores na cabeça, mas agora ela estava bem mais “cool”, de shorts e uma camisa caída, com o nome de alguma banda que eu provavelmente não conhecia. Em termos de moda, eu era basicamente o mesmo de sempre, algumas coisas nunca mudam.

Minutos (ou foram horas?) depois, um sinal tocou, de longe, nos tirando de um transe que permitimos nos envolver. Eu havia perdido a aula, talvez ela também e rimos juntos do fato com quem ri de uma piada interna.

Ficamos em silêncio, sem saber o que falar a seguir, parecendo que o próximo passo era se despedir.

- Então, quer tomar alguma coisa em algum lugar? (Desde quando eu fazia o que era o mais certo?)

Ela acenou com a cabeça, prendendo os lábios em um sorrido, exatamente como eu lembrava, nos levantamos e seguimos na mesma direção, sem saber exatamente onde estávamos indo, com as mãos pendendo, lado a lado, vítimas de um estranho magnetismo.

É claro que eu não sabia o que estava fazendo, masquem se importava? Eu estava bem como quando jogava basquete ou dava chutes no parque com meu pai, então aquilo – seja lá o que fosse aquilo – devia ser bom.

Ali, em meio a estudantes que saíam de aulas às quais haviam comparecido porque não encontraram nenhum primeiro amor nos corredores da faculdade, eu só senti falta de algo do qual nem lembrava há muito tempo: meu velho patinete, que certamente estava jogado em um quase organizado quarto de despejo no meu velho apartamento, casa dos meus pais, onde nenhum alimento da geladeira carregava mais etiqueta nenhuma com o nome de ninguém.

P.S. (Do tipo "se eu fosse você, eu lia"): Eu não sei quantos de vocês que chegaram até aqui já assistiram "ABC do Amor" (ou Little Manhattan no título original), aquele filme romântico bonitinho com crianças (entre elas, um bem mais jovem Peeta/Josh Hutcherson). Mas se você já assistiu, então provavelmente percebeu (pelo menos pelos nomes) que essa crônica é na verdade uma fanfic, ou algo assim. Por quê? Porque eu sempre digo que vou escrever fanfics quando não fico totalmente satisfeita com o final de um filme que amo muito. Amo "ABC do Amor", mas achoo final meio triste para o casalzinho que eu amo mais e dessa vez escrevi essa fanfic, imaginando a possibilidade de um reencontro deles anos depois, como eu gostaria que acontecesse em um universo paralelo onde os filmes não acabam, mas seguem sua história. Espero que vocês, tendo visto ou não o filme, tenha curtido ^^