A verdade sobre "Jerônimo, o Herói do Sertão"

A VERDADE SOBRE JERÔNIMO, O HERÓI DO SERTÃO

Miguel Carqueija

Aprecio que haja heróis na ficção – e mais ainda na vida real – mas dói ver como no Brasil os da ficção conseguem ser tão poucos e tão irrelevantes.

Lembram que fizeram da Tiazinha uma super-heroína num seriado de televisão?

Bem, quando eu era criança fazia o maior sucesso entre os garotos (nunca vi nenhuma menina gostar) o seriado radiofônico “Jerônimo, o herói do sertão”, escrito por Moysés Weltmann, conhecido radialista da Rádio Nacional.

Era uma espécie de faroeste brasileiro. Eu era ainda criança quando surgiu a revista editada pela Rio Gráfica e aí passei a acompanhar também o personagem nos quadrinhos. Fizeram um filme, não me levaram para ver. Quando comecei a escutar a novela, que passava á noite, creio que a série já durava há vários anos.

Durou ainda alguns; muito tempo depois virou novela de televisão, duas vezes até. Hoje o Jerônimo está bastante esquecido.

Eu acompanhava muito aquela série, se bem que mamãe não gostava e papai era indiferente. Meu irmão também acompanhava. O herói era invencível, brigava a socos, tinha a sua ética incorruptível, até rezava, ia à igreja... na escola, nós garotos comentávamos as aventuras, as da rádio e as dos quadrinhos, que chegavam atrasadas em relação aos capítulos irradiados. As meninas não participavam. Para elas ele não devia ter graça.

Hoje eu tenho senso crítico e vejo claramente os defeitos do herói. Primeiramente, Jerônimo não tinha emprego conhecido. Não se sabe de onde vinha o seu dinheiro, coisa jamais explicada. De Serro Bravo, sua origem (o sertão da novela não se sabe em que estado brasileiro ficava; talvez Pernambuco) ele se espalhava pelo mundo afora, mas nunca em cidades grandes ou conhecidas, nunca ia até o mar. Era sempre um sertão anônimo e árido, de caatinga, onde os coronéis se digladiavam, onde os jagunços campeavam. Jerônimo se metia em tudo quanto era briga por onde passava. Com certeza não tinha porte de arma. As suas aventuras eram na base do pugilato e do tiroteio. Ele tinha uma noiva, a Aninha, por sinal sua prima, coisa que hoje em dia não se aconselha por causa do fator genético. Entretanto, ela geralmente ficava em casa, raramente aparecia e era tão esquecida quanto a Jane do Tarzan, pois alguns romances de Burroughs sequer mencionam esta... de qualquer forma Aninha era inútil e só atrapalhava.

Afinal, o seriado era bem machista. Tudo de importante era resolvido pelos homens. As mulheres não apitavam mesmo sendo o herói filho de uma pistoleira aposentada, a Maria Homem.

Os bandidos costumavam morrer a bala ou mesmo suicidavam-se.

Não era um seriado muito recomendável para crianças, dado o grau de violência; mas as crianças (pelo menos os meninos) se vidravam no falso herói. Eu, inclusive.

Mas o pior vem agora. Jerônimo fazia-se acompanhar por um rapazinho negro de uns 15 ou 16 anos, o Moleque Saci, que se metia com ele nas pancadarias e nos tiroteios. Não sei se chegaram a revelar que nome tinha afinal o Moleque Saci, mas ele era filho de um capanga conhecido como João Corisco. E João Corisco simplesmente livrou-se do filho entregando-o aos cuidados de Jerônimo, assim sem mais nem menos e claro, sem nenhum documento de adoção legal; até porque, tendo mais ou menso 25 anos, o pistoleiro não poderia adotar o garoto, por não haver pelo menos 18 anos de diferença nas idades.

Se o protagonista não tinha porte de arma, o moleque nem se fala...

E assim se desmistifica um ícone da ficção nacional: de herói e paladino da justiça passa a ser um desocupado, desordeiro e corruptor de menor.

Rio de Janeiro, 7 de março de 2016