Cap 15

HAITI, 2006

Quando se está numa guerra, costuma-se contar quantos dias você sobreviveu, quantos dias falta para voltar pra casa, ver a mulher, os filhos, os pais... Os guerreiros costumam escrever cartas semanalmente para suas famílias, manter fotos dos entes queridos pregadas ao beliche, fazer ligações telefônicas quase todos os dias pra contar tudo que acontece, que está vivo, etc... Isso não acontecia com o sargento Denis Muller, ele não tinha família, nem ninguém que se importava com ele, não usava o telefone, não enviava nem recebia cartas, não tinha fotos coladas pelo seu espaço, nem sequer tinha amigos dentro da instituição.

Muller era o que os outros chamavam de máquina de combate. Toda e qualquer incursão nas redondezas de Porto Príncipe ele se candidatava voluntariamente para ir, rara foi a ação em que não esteve presente, seja comandando um pequeno grupo de patrulha ou acompanhando algum oficial na busca por guerrilheiros.

Os soldados aprenderam a respeitá-lo da pior maneira. No segundo mês no Haiti, um sargento chamado Peres, de Minas Gerais e com quase 2 metros, resolveu cortar a fila do almoço propositalmente na frente de Denis, queria ver do que esse garoto metido era capaz.

- Pegue a fila sargento! – disse calmamente Denis ás costas de Peres.

- Algum problema? – respondeu o grandalhão, virando de lado e mostrando o brasão com a caveira com a espada enfiada que estava costurado á sua jaqueta. A fila inteira riu.

- Se nos comandos não te ensinaram disciplina, não me obrigue a te ensinar – respondeu Denis em tom baixo, mas com rigidez na voz.

O comando virou-se e encarou o homem quase vinte centímetros mais baixo, estavam á um metro de distância e ele deu um passo para intimidar Muller, porém, esse nem se mexeu, nem sequer engoliu em seco.

- Quer repetir na minha cara?

Denis apenas o encarou, sem dizer nada.

- Seu selva de merda! – disse o comando entre os dentes.

Nessa Muller não se segurou, um cruzado de esquerda acertou tão rápido a cara de Peres que esse deu dois passos pra trás sem saber que tinha sido atingido. Levantou-se do chão e sentiu o gosto de sangue na boca.

- Desgraçado – disse entre os dentes e pôs-se a correr na direção de Muller, tentou agarrá-lo pela cintura e arrasta-lo para o chão, porém Muller novamente fora mais rápido: antes que Peres encostasse nele, Denis pegou o bandejão de ferro que estava á sua frente com as duas mãos e num só movimento circular acertou em cheio a cara do grandalhão, derrubando-o de costas para o chão. O comando se levantou, estava sendo humilhado, a fila já se desfizera e abrira um círculo, Perese já se preparava para outra investida, quando Muller avançou, aplicando um soco canhoto no estômago e um gancho com a direita no queixo de Peres que caiu desacordado no chão.

Muller recebeu uma advertência e Peres voltou para o Brasil.

Paulo Victor sentou ao lado de Muller no mesão improvisado, ele admirava o sargento e dois meses após a encrenca com o sargento Peres serviram para aumentar mais ainda o interesse do garoto por Denis. Descobrira que o sargento não era apenas um membro diferenciado no CIGS, mas um exímio atirador e perito no combate desarmado e o que mais o intrigava era o fato de serem tão parecidos: Paulo Victor não teve a mãe morta como Denis, mas seu pai o largara quando era criança e sua mãe era uma alcoólatra depressiva que não ligava nem um pouco pra ele, como Denis, Paulo Victor ligou-se ao exército.

- Sargento, daqui dois meses os homens vão voltar pra casa, eu soube que o senhor pediu permissão para ficar...

- E o que tem isso, soldado? – respondeu Muller, não deixando o garoto terminar, mas mostrando um pouco de simpatia na voz.

- Eu pedi permissão para ficar mais também.

Muller o encarou curioso. Engraçado como olhar para aquele garoto parecia olhar para um espelho, claro, sem a rispidez e toda a bagagem que Denis tinha e sabia que o garoto não, mas em termos de personalidade, era mesmo como olhar o reflexo na água parada de um lago.

- Isso tudo para receber a indicação?

- Em parte pela indicação – disse o garoto olhando para a bandeja – em parte porque não tenho muitos motivos em voltar pra casa. Eu sou um infante, um guerreiro sargento, minha vida não tem sentido se não tiver o exército!

Muller permaneceu calado, esses quatro meses foram suficientes para fazer o sargento decidir se arrumaria uma indicação ou não para Paulo Victor, decidira que sim, o garoto se demonstrava filho do exército, podia ter seus defeitos, suas dificuldades, mas sempre tentava e não desistia nunca, podia-se dizer que o garoto estava sempre no limite. O garoto era um guerreiro. Muller lembrou-se de um velho lema que escutara do sargento Moura e decidiu passar para Paulo Victor:

Todo guerreiro já ficou com medo de entrar em combate.

Todo guerreiro já traiu e mentiu no passado.

Todo guerreiro já perdeu a fé no futuro.

Todo guerreiro já trilhou um caminho que não era o dele.

Todo guerreiro já sofreu por bobagens.

Todo guerreiro já achou que não era um guerreiro .

Todo guerreiro já falhou em suas obrigações .

Todo guerreiro já disse SIM quando seu coração pedia que dissesse NÃO.

Todo guerreiro já feriu profundamente alguém que amava.

Por isso é que é um Guerreiro.

Porque passou por estes desafios e não perdeu a esperança de se tornar melhor.

O garoto ouvia embasbacado com a sabedoria que lhe era transmitida. Quer dizer que a rocha chamada Denis Muller não era apenas uma arma em forma de gente, mas continha uma sabedoria que poucos tinham conhecimento, Muller encontrou o que há muito tempo procurava: alguém que enxergasse a instituição da forma única e suprema que ele enxergava. A partir desse dia, Denis e Paulo Victor tornaram-se bons amigos e ele colocou de lado o fato do garoto não ser um cursado, passando-o a chamar pelo nome.

O gelo que o Denis mantinha desde a infância pela perda da mãe e a distância do pai, ele só encontrara no sargento Moura, que apesar de ter a mesma posição hierárquica, era bem mais velho. Moura tinha mais de trinta anos quando Denis estava cursando o CIGS e o adotara como um filho, agora, Denis adotava o jovem soldado Paulo Victor Viana como seu apadrinhado, uma coisa que ele nunca pensara em ter antes. O exército precisava de mais guerreiros como o soldado Paulo Victor.

Ace
Enviado por Ace em 08/07/2007
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