Cap 16

A recepção do hospital estava quase vazia, salvo por um casal de velhinhos simpáticos que estavam no saguão e uma dupla de para-médicos que passaram empurrando um leito com uma senhora de idade que ia para a emergência. Apesar de ser um homem de presença, ninguém o notou quando entrou e se dirigiu ao elevador, ele usava calça jeans, botas Timberland, uma camisa de malha por dentro das calças e uma jaqueta de couro preta por cima, não levava flores nem presentes como a maioria das pessoas que visitam um ente querido hospitalizado. Ele apertou o botão e aguardou.

Quinto andar.

Caminhou com passos lentos, como se nada na vida o preocupasse. Os passos no corredor vazio faziam um barulho rítmico e a borracha da sola ás vezes chiava no piso muito bem encerado. Ele parou na recepção das enfermeiras do quinto andar.

- Boa noite – disse ele com a voz serena, abrindo um sorriso – por favor o quarto 515?

- Boa noite – respondeu a enfermeira - pegue o corredor norte, é o último quarto.

Ele notou que a garota devia ter por volta dos vinte e três anos, era magrinha, morena, com lentes azuis e um sorriso agradável, não era linda, mas sabia chamar a atenção, parecia ser interessante. Pensou que quando fosse embora iria tentar convida-la para sair, talvez uma boate ou um jantar, passou-lhe pela cabeça falar isso tudo agora, mas preferiu deixar para o fim, apesar de já serem três horas da manhã, ele não iria se demorar.

Pegou o corredor norte e seguiu até o final, tentando não dar bola para o desagradável cheiro de éter que os hospitais têm.

Talita estava dormindo quando ele entrou, soubera que a esposa do detetive Caio estava muito doente e provavelmente terminaria seus dias no hospital. “Pobre detetive”, pensou ele quando viu a bela moça repousando um sono tranqüilo, parecia que não estava sofrendo nem sonhando, respirava devagar, ligada á alguns aparelhos que tinham funções que ele nem imaginava.

Pegou a ficha dela que estava pendurada ao pé da cama e leu. Dizia que tinha uma pancreatite crônica e que o estado era terminal, olhou a ficha de Talita de cabo a rabo, não deixou passar nenhum detalhe. Lembrou dos olhos grandes da garotinha, que pareciam pedir socorro, quando a mãe bateu no poste: Ani, pelo que soubera. “Garota adorável” pensou, é uma pena que ficaria sem a mãe. O pai, o detetive Caio, ele acreditava que saberia cuidar da criança, na verdade, até que ele simpatizava com o rapaz, parecia ser um homem honesto, íntegro, boas qualidades para um pai e um policial, apesar de estar caçando-o, estava apenas cumprindo sua obrigação. Já o detetive Marco, esse ele não suportava, sabia que assim que tivesse a chance iria acabar com a raça do desgraçado, soubera que Marco fora BOPE e saiu não pelo fato de se achar muito inteligente, o que afinal não parecia ser, visto que os dois não tinham nenhuma pista de quem ele era, o detetive Marco saíra do BOPE por ser covarde, apontar uma arma na cabeça dos outros, enfiar porrada para descobrir informações, isso com certeza ele sabia fazer, apesar da juventude, sabia fazer muito bem, mas não era homem suficiente para ser alvo de traficantes.

Ele notou que Talita estava olhando-o.

- Quem é você?

Silêncio. O homem não sabia o que responder.

- Eu sou um amigo de seu marido. – disse ele finalmente - Como você está? – perguntou.

- Sinto muita dor... – disse ela – eu não sei quanto tempo vou agüentar...

- Você precisa ser forte – disse o homem – sua filha e seu marido precisam de você! – ele sentou-se no leito da cama.

- Você não deve desistir... – continuou ele.

- Por que se importa? – perguntou Talita interrompendo-o.

Ele pensou por um momento.

- Porque eu sei o que é perder quem a gente gosta e se obrigar a esquecer tudo em que a gente acredita.

- E por que você está aqui e não o meu marido? – perguntou ela com lágrimas nos olhos – você não é amigo de meu marido, ele não mandaria ninguém aqui... – continuou ela calmamente – então, quem é você.

Ele sabia que ela era esperta, mas nem tanto.

- Eu sou o homem que ele procura! – respondeu ele esperando uma reação de espanto, mas ela não demonstrou nada.

- E o que você está fazendo aqui? – perguntou mais curiosa do que assustada, fechando os olhos molhados – você veio me matar?

- Não – disse ele calmamente – eu nunca faria isso.

- Por que não? – disse ela com a primeira lágrima escorrendo.

“Meu Deus” pensou ele, ela estava querendo que ele a matasse, o sofrimento dela é maior do que ele pensava.

- Eu não sou um assassino – disse ele – sou um vingador. Uma alma atormentada que está no inferno e escalando com todas as forças para sair. Você deveria fazer o mesmo.

- Eu tento – respondeu – você não entende como é difícil ficar longe da minha Ani e do meu Caio. Queria pedir á eles que ficassem aqui, comigo, até o momento em que Deus me chamar... mas sei que seria egoísmo, sei como é difícil ver a pessoa que se ama morrendo aos poucos. Eu penso tanta coisa, estou tão confusa com tudo. As pessoas pensam que no leito de morte fica tudo mais claro, sabe?

Ele concordou com a cabeça

- mas para mim está tudo mais confuso!

Talita chorava desesperadamente, não um choro gritado e escandaloso, mas um choro profundo que tocou no coração dele, ele tentou impedir uma lágrima de escorrer, mas não conseguiu.

- Eu só vim aqui pedir que convença seu marido a largar o caso – disse ele – eu não queria que ele se machucasse.

- Por que está fazendo isso? – perguntou Talita – por que tanta raiva no coração?

Ele teve lembranças de suas razões. Estava tendo flashes de tudo que ocorrera, ódio, remorso e até nojo invadiam sua mente juntamente com as lembranças. Um trovão e o início da chuva batendo no vidro acordaram-no de seus pensamentos.

- A vida é algo muito frágil sabe? – disse ele, olhando para o lençol dela – Matar um ser humano é fácil, as vezes, um soco no nariz, uma pedrada na cabeça, qualquer besteira pode matar uma pessoa. Mas as idéias, a memória – agora ele procurou os olhos de Talita – isso são á prova de balas.

Talita concordava com a cabeça. Ela não entendia os motivos e aquele homem certamente não os diria, mas pelo olhar dele, pela forma com que falava, ela sabia que ele não pararia por nada. Alguém conseguira feri-lo muito seriamente.

- Por favor, ouça meu conselho: tire seu marido dessa investigação!

Ele levantou-se e despediu-se com um aceno de cabeça. Colocou os óculos espelhados e saiu do quarto. Ia falar com a enfermeira bonitinha, mas quem estava lá era uma gorda feia que olhava-o com muita suspeita. Ele acenou com a cabeça e passou direto por ela.

Caio estava subindo ao quinto andar pelo elevador número um, recebera uma ligação da enfermeira do andar que Talita estava, dizendo que um homem perguntara sobre o quarto de sua esposa. Ela havia recebido um caderno com os nomes de todas as pessoas que pudessem vir á visitar sua esposa: seus sogros, Marco, Sâmia e a coordenadora da escola de Ani. Afora esses, nenhuma pessoa teria motivos para visitá-la. A enfermeira sabia que ele não era nenhum desses e que não deveria ter deixado o homem entrar, mas quem estava no momento era uma novata, que começara o trabalho ontem e não sabia de nada, apenas comentou com a chefe das enfermeiras, a enfermeira Olga, que prontamente ligou para Caio.

O homem entrou no elevador dois segundos antes de Caio sair pelo outro e correr até o quarto 515, passando direto pela recepção.

Talita estava dormindo. Caio olhou a esposa e sentou-se ao seu lado fazendo-a acordar.

- Olá meu anjo, como você está? – perguntou ele carinhosamente.

Ela sorriu ao vê-lo.

- Melhor agora – respondeu – mas estou cansada de ouvir isso das pessoas.

- Quem veio te ver?

- Ninguém importante! – mentiu ela – uma amiga!

Caio encarou-a, ele sabia que era mentira, a não ser que a enfermeira tivesse confundido a amiga dela com um fortão bonitão.

- Que amiga?

Ela ficou sem palavras, queria ser sincera com o marido, mas conhecia seu amor á muito tempo, sabia que ele era teimoso e não desistiria da investigação, sabia também que ele identificava facilmente uma mentira sua.

- Talita – repetiu ele sério – quem estava aqui?

Ela continuava a encarar o chão.

- Caio – disse ela e esperou um pouco, então buscou os olhos do marido – quero que você desista da investigação!

- O que? – espantou-se.

- Você me ouviu – disse ela – tire uma folga, um tempo para ficar comigo, não quero que nada aconteça com você.

Um trovão chegou ao quarto ao mesmo tempo em que Caio entendeu o que se passara ali.

- Droga – disse pegando o celular e correndo para o elevador, sem despedir-se de Talita.

- Não, Caio, fique aqui! – gritou, mas ele já havia saído.

- Tá certo – disse Marco – eu estou vendo ele.

Estivera no carro esperando por Caio, os dois estavam na delegacia fazendo o plantão quando receberam a ligação do hospital. Um homem forte e bonito, segundo a enfermeira novata, perguntara sobre o quarto de Talita e estava indo para lá.

“- E por que você deixou ele entrar? – gritou Caio ao telefone com a enfermeira Olga, sem querer entender que nem ela e nem a novata tinham culpa.”

Agora Caio acabara de ligar para Marco dizendo que um homem acabara de descer o elevador, Marco estava ao lado do estacionamento, em uma vaga que ficava em frente à recepção para desembarque de pacientes, o carro não podia ficar ali, mas Caio nem se importara, deixara as chaves na ignição para que o parceiro o ajeitasse. Marco nem se incomodou, “se alguém aparecer eu dou uma carteirada e tudo está resolvido”, pensou. Marco tinha o costume de dar carteirada para tudo: entrar em festas, boates, estacionar em locais que eram proibidos, etc... um legítimo abuso de poder que ele chamava de “aproveitar tudo que a profissão tem á oferecer”

O homem passou rapidamente na frente do carro em direção ao estacionamento inferior, Marco saiu do carro em direção ao homem.

- Ei, cara – gritou Marco – posso falar com você um minutinho?

O homem virou-se com uma pistola apontada na direção de Marco.

- Merda – falou o policial pulando atrás de um pilar do estacionamento. O homem disparou três vezes, errando o primeiro e acertando os dois últimos no pilar. Marco sacou sua 45, gritos de pânico emergiam da recepção. A adrenalina subiu e o coração acelerou. Então saiu de trás do pilar e viu o vulto do homem correndo ladeira abaixo, tentou fazer alguma mira, mas havia algumas copas de pequenas árvores fazendo a quebra da visão. Marco começou a descer a ladeira, arma em punho, perna á frente de perna, joelhos dobrados e a arma apontada para a frente.

- Vou te matar, filho da puta! – disse ele para ninguém.

O estacionamento inferior estava escuro, ele encostou-se atrás de um outro pilar e colocou rapidamente uma parte da cabeça para tentar enxergar onde o homem estava, não viu nada além de poucos carros, mas demorou-se mais do que devia e um tiro passou de raspão acertando o pilar, próximo á sua cabeça. Marco recuou assustado, verificou a bala na agulha, começava a suar, “esse desgraçado atira bem” pensou. Um barulho de motor ligando chegou aos seus ouvidos, ele saiu de trás do pilar com a arma apontada para o carro, mas o homem já havia arrancado e Marco teve um centésimo de segundo para atirar ou pular por cima do capô do carro, e talvez pelo instinto de auto-preservação ele optou pela segunda opção. Saltou com as costas por cima do capô e rolou por toda a extensão do Opala preto, caindo de lado no chão de paralelepípedos.

O carro, negro como a noite, tinha atrapalhado a noção de distância do policial e se não fosse por pura sorte, ele estaria todo quebrado e não apenas com um corte na testa e um latejado na parte direita da bunda. Marco levantou-se e correu em direção ao Vectra de Caio. Entrou no carro, ligou o motor e arrancou atrás do Opala, não ouvindo o grito de espere que Caio deu, segundos depois que Marco passou por ele.

O homem dirigia o Opala para fora do estacionamento, não esperava o imprevisto dos policiais no hospital e não conseguira pagar o estacionamento. “Não tem problema”, pensou enquanto quebrava a cancela e ouvia gritos de indignação do segurança. Não podia mais se arriscar assim, quase que colocou tudo a perder e agora aquele garoto insistente estava na sua cola, reparou ao olhar pelo retrovisor.

Os carros saíram quase juntos do hospital e entraram na BR-116, o Opala pela pista do meio e o Vectra revezando entre a da direita e a do meio. O carro de Marco não conseguia alcançar mais velocidade, já estava á quase cento e cinqüenta quilômetros por hora, enquanto o Opala estava quase á cento e sessenta. Marco sacou a 45 para fora da janela em direção ao Opala e deu um disparo, acertando a lataria preta do carro.

- Desgraçado – disse o homem com o susto. “Podia ter algum outro carro passando e o safado do Marco disparava em meio á uma avenida”, pensou. Começou a ziguezaguear entre as pistas, procurando ficar sempre na frente do Vectra. Marco tentava desviar o carro, precisava deixar o homem sempre á sua esquerda, pois com o motor do Vectra, ele não conseguiria alinhar o carro para disparar no caso do Opala estar á sua direita.

O Opala estava na frente de Marco, estavam na mesma pista, questão de poucos metros e ele calculava a mira quando o carro aproximou-se rapidamente, o homem havia dado uma freada brusca e ele não percebeu, a frente do Vectra ficou bem amassada, a traseira do Opala também. O Vectra patinou e Marco largou a arma em seu colo, soltou imediatamente o acelerador, dando bombeadas leves no freio sem girar o volante, o carro voltou a alinhar e ele voltou a pisar no acelerador.

- Merda de pista molhada! – reclamou Marco e lembrou-se de colocar o cinto.

O Opala tentava ganhar velocidade, também havia patinado, mas o homem, apesar da maior habilidade de direção, teve maior dificuldade para controlar o carro, já que a patinagem foi feita pela a parte traseira do Opala.

Marco conseguiu colocar o Vectra bem ao lado do Opala, pegou a arma em seu colo e já ia colocando-a para fora quando teve que abaixar-se. O homem já havia sacado a pistola e disparou quatro vezes contra ele. O primeiro tiro passou por cima da cabeça de Marco, o segundo acertou a pista, o terceiro ricocheteou na calota do Vectra e o quarto acertou o pneu, fazendo com que o carro perdesse o controle. O Opala ganhou velocidade disparando na frente do Vectra desgovernado. Marco conseguiu desviar do primeiro poste, mas não do gelo baiano que serviu de rampa para o lado direito do carro, virando-o em alta velocidade. O Vectra capotou várias vezes, cada vez que atingia o chão, peças metálicas e vidro voavam e se não fosse pelo cinto, Marco estaria morto e não apenas com um ombro deslocado e alguns cortes superficiais por todo o corpo.

O homem olhava pelo retrovisor. Achou que deveria sentir prazer, mas pegou-se torcendo que o detetive estivesse bem, afinal, quando tudo estivesse acabado, precisaria de alguém com coragem para apertar o gatilho. Ele pegou o celular e discou três números.

- Corpo de bombeiros, qual a emergência? – perguntou a mulher do outro lado da linha.

Ace
Enviado por Ace em 08/07/2007
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