Assim ou ...nem tanto 34
O talento
Diz-se que cada pessoa tem, pelo menos, um talento. Muitos dos talentos que aparecem são coisas simples, insólitas, imprevisíveis. O perdido talento de meu primo José Maria era, em criança, introduzir as orelhas no canal auditivo externo e ficar a olhar, desorelhado, para o que havia para olhar. De tão manuseadas as suas cartilagens passaram a macias e deformadas. A poder de ralhos e tabefes perdeu este talento mas é bem provável que tenha outros menos conhecidos. Na verdade há talentos em todas as áreas e seria cansativo enumerar alguns que sei fora da capacidade para falar, escrever, pintar ou esculpir. Há quem minta de modo magistral, quem cante com variações tonais magníficas, quem, dominando outros saberes inatos, se venha a impor como Mestre onde nunca antes aprendeu. Sem talento mas no convencimento de que a prática dos mesmos erros faz da vontade uma escada de importância há, aqui em apreciável quantidade, muita gente a fazer coxos os versos, a escrever com erros de ortografia, a pôr-se em bicos de pés para ganhar altura e notoriedade. - O meu curso é de Economia mas escrevo “Poesia” disse-me ela. Claro que ainda não me afirmo como Poeta mas lá chegarei como vejo tantos por aqui e que socialmente não são nada, acrescentou. Eis um conceito estranho de talento. E tudo que é dela é para grafar em maiúsculas quer seja a poesia adoentada, quer sejam os sonhos emoldurados numa licenciatura em economia. Salva-se nesta “talentosa” o corpo jovem, a cara linda que uns olhos esplendorosos iluminam, a fé em caracóis loiros. Está disponível para ganhar, para voltar por cima, para ser. E o dramático é haver quem a publique, quem finja que a reconhece como expoente dum talento que, na verdade, é só tolice e vaidade.