VACINA PARA NÃO PRECISAR DE MULETAS

Meados de 1970, muitas vilas de Porto Alegre foram empurradas para mais longe do centro da cidade e assim abrindo espaços para construção de condomínios, ou desocupando áreas que alagavam frequentemente ou ainda áreas para abrigar repartições públicas.

Por exemplo as famílias de grande parte da Santa Luzia e da Dos Marítimos compraram lotes na Lomba do Pinheiro, depois, muito tempo depois ficamos sabendo que o vendedor dos lotes, um português de nome Pedro, quase tudo do que loteou era área verde ou terras sem herdeiros.

Até então eram poucas casas, algumas chegando a distar um quilometro da mais próxima. Para perto de casa também vieram algumas famílias da Vila Jardim juntando-se as que vieram do Mato Sampaio, Bom Jesus e Ilhota e outros lugares de alagamento, como as que formaram a Vila Mapa.

Numa travessa que já iniciou com o nome de estação do ano - Primavera, fixou-se uma família com vocação para vendedores ambulantes e assim bastava passar pelas proximidades da praça Parobé que encontrávamos pelo menos um deles. De todos havia um especial, pois tivera paralisia infantil, quando ainda criança. A atrofia de ambas as pernas exigia que usasse muletas. Graças que ele não recebeu isto como um peso amordaçador, então trabalhava desde bem cedo, aliás todos nós trabalhávamos, ele brincava e assistia a gurizada jogando futebol. Um dia faltou um goleiro e alguém disse o Muleta vai para o gol. Como se fosse um desse brinquedos transformer ele foi apoiando-se nas muletas caseiras e ficou da nossa altura, de inicio levou alguns gols, mas rapidamente desenvolveu habilidades e defendia bolas no ângulo. O muleta foi crescendo e um dia rebelou-se:

- Jogo meio tempo no gol! - Todos pensamos que o outro tempo ele ficaria sentado, mas nada disto, ele queria jogar na linha. Logo ele adaptou-se sem problemas, corria como se as muletas fossem suas pernas, chutava, passava e dava tostões. Mudei-me para o interior em 1977 e mais de quinze anos depois retornei à Porto Alegre e numa manhã ensolarada prenderam o Muleta, por esconder na banca de quinquilharias, objetos frutos de furto. Observei de longe, chateado, porque o reencontro seria difícil, hoje reconheço que poderia ter conversado com ele. Depois soube que ele era contumaz em esconder objetos furtados ou roubados, provavelmente ele se prevalecia da condição física que possuía, para escondê-los ou era chantageado pela bandidagem. Mais recentemente passei perto do camelódromo na avenida Voluntários da Pátria e lá estava ele no mundo dos ambulantes, claro que já sem as muletas feitas a facão, agora com muletas de alumínio e pés de borracha e com a mesma ou maior desenvoltura.

Ainda bem que os crimes que ele cometeu eram de pequeno potencial.

Sempre que uma dor qualquer me incomoda eu lembro do Muleta pela capacidade de lutar sem esmorecer, pena que não tenha sido contemplado com a vacina!

ItamarCastro
Enviado por ItamarCastro em 14/02/2016
Reeditado em 05/11/2020
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