O Homem do Saco

Numa noite da semana passada, num momento de grande alegria em minha casa quando brincava com minha esposa e minhas filhas já bem crescidinhas e as três, para variar, se uniram para me vencer em um jogo de charadas e adivinhações, com o objetivo de me safar de uma pergunta para a qual não tinha resposta imediata, fechei o semblante e disse:

“A brincadeira acabou. Hora de ir para a cama!”

É inevitável dizer que recebi uma sonora e longa vaia!

Minha caçula que de forma muito debochada, como futura grande atriz que é e será e que me chama jocosamente de José de Alencar todas as vezes que utilizo alguma palavra que não faz parte do seu vocabulário cotidiano, foi a primeira que percebeu “minha saia justa” e logo lançou:

“Pegamos você! Essa nem o José de Alencar sabe!” E explodiu em uma gostosa e sonora gargalhada tipicamente sua.

“Como assim? É claro que eu sei a resposta apenas estou cansado e quero parar a brincadeira, afinal estou há mais de uma hora respondendo essas perguntinhas de vocês! Pra mim chegou por hoje!”

Inevitável dizer que as vaias e apupos aumentaram ainda mais até que, para não ter que reconhecer minha completa falta de criatividade momentânea, usei de minha pseudo prerrogativa de líder daquele parlamento e com autoridade de pai e marido machão latino americano sem dinheiro no banco e sem parentes importantes da qual me investi, lancei um alto brado retumbante:

“Se vocês não pararem agora eu vou chamar o Homem do Saco e vou mandar ele levar as três embora para sempre!”

O silêncio foi imediato e geral, porém por poucos segundos apenas, até que minha mulher, que também já não é mais nenhuma menininha absorveu a resposta e literalmente explodiu em uma sonora gargalhada, o que não é absolutamente do seu feitio e me interpelou:

“Homem do Saco, de que túnel do tempo você foi tirar essa? Hahahahahahahaha!”

Foi espantosa a feição de espanto que tomou a face das meninas. Uma olhava estupefata para a outra, até que a mais velha sentenciou:

“Xiiiiiiiiiiii, agora os dois piraram da batatinha! Acho que o caso é grave, tem que mandar internar! Chama o 192 e pede pra trazer camisa de força pra dois!”

E então todos caímos numa gargalhada o que nos assemelhava realmente de um bando de loucos foragidos de algum manicômio!

Passaram-se quase dez minutos até que eu consegui voltar a concatenar os pensamentos, a barriga até doía de tanto que havíamos rido e então, investido do espírito do saudoso José de Alencar voltei ao comando daquela bagunça generalizada, para tentar explicar quem era aquele personagem que houvera trazido da minha mais tenra infância para os dias atuais.

Voltando mais de quarenta anos no tempo, quando ainda usava uniforme de calças curtas e meio branca três quartos para ira à Escola Estadual do bairro onde morava, comecei a descrever para as meninas quem era o Famigerado Homem do Saco.

Desde quando consigo lembrar-me, todas as vezes que uma criança do meu tempo (coisa de gente velha falar assim) fazia alguma mal criação para alguém mais velho, falava um palavrão, e bunda se encaixava nessa categoria de palavras, quebrava alguma coisa ou fazia algo que atrapalhasse a ordem natural das coisas na escola e principalmente em casa, era imediatamente ameaçado, isso mesmo, ameaçado de ter todos os seus brinquedos entregues para esse senhor que povoava os piores pesadelos de nós, crianças das décadas de sessenta e setenta.

Agora, como explicar para minhas filhas que cresceram em tempos menos ameaçadores e mais democráticos quem era esse senhor. Iniciei com uma breve aula de história:

“Quando as cidades e seus bairros começaram a se formar, diversas pessoas de outras regiões do Estado e do País que viviam no meio agrícola (no interior), começaram a se transferir para os novos centros urbanos e principalmente as capitais.” Prossegui:

“Com toda certeza houve uma época em que o migrante chegava ao centro urbano e facilmente conseguia um emprego muito melhor do que o da sua cidade natal. A cada novo migrante que encontrava colocação, mais uma dezena, ou centena de pessoas de sua cidade ou região se inspiravam no seu sucesso, arrumavam as malas e partiam em busca do seu filão de ouro.”

“Rapidamente o ouro virou pirita (ouro dos tolos), os empregos foram ficando mais escassos e as oportunidades sorriam apenas para os mais bem preparados, o que não era o caso da grande maioria dos retirantes. Deste modo as cidades começaram a ser povoadas por um grupo de pessoas que hoje são chamadas carinhosamente de Moradores de Rua ou simplesmente Sem Teto.” Todas quietas, então continuei:

“Tornaram-se então andarilhos urbanos: maltrapilhos, sujos, cabelos e unhas muito compridos, normalmente descalços com verdadeiros cascos sob os pés sujos, decorrentes das horas e horas de caminhada a esmo pelas ruas. Como bagagem, normalmente um saco de estopa com algumas roupas velhas. Daí vem o nome: Homem do Saco!”

“Agora saquei! Saco de estopa nas costas... Homem do Saco. Po pai eu tava achando que era outra coisa! Qua...qua...qua...

Nem dei bola para o comentário e continuei:

“Nossos pais, ainda trazendo em sua herança de educação os métodos da palmatória, das surras de cinto, dos castigos no escuro, da pimenta malagueta na língua para punir os palavrões e toda sorte de torturas para “educarem” da melhor forma possível nós que éramos os seus filhos, encontraram neste personagem um ótimo vilão para nos intimidar e amedrontar. Era a psicologia infantil da época.”

O silêncio que houvera tomado conta do ambiente era quase fúnebre, o que representava que, ou elas já haviam dormido ou a história estava interessando e então prossegui:

“Todos os dias, pelo menos umas três vezes eu escutava: Se você fizer isso, dou o seu brinquedo tal pro Homem do Saco levar e não trazer nunca mais!”

Imagine só que tortura não era isso, era como se hoje ameaçasse a encerrar suas contas do MSN e do Orkut, dar o vídeo game e o aparelho de DVD para alguém, ou ainda deixar os telefones celulares de vocês sem crédito para sempre!”

“Pô pai.... sinistro isso! O vovô e a vovó faziam isso mesmo?” Perguntou uma delas.

“Isso e muito mais! Muitas vezes a ameaça era que eles iriam me entregar para o Homem do Saco, não os meus brinquedos!”

“Era o terrorismo na sua mais pura essência. Os coitados dos marginalizados moradores de rua ganhavam dimensão de super vilões e ladrões de nossos sonhos mais importantes. Tínhamos tanto medo do Homem do Saco que ao passarmos por uma rua e avistarmos um deles, atravessávamos a rua só para não temos que cruzar com ele na mesma calçada. Tratava-se de verdadeiro Pânico! Todos os dias o Homem do Saco me amedrontava!”

Neste ponto, tentando aproveitar o papo para não deixar uma imagem tão cruel daquele pobre coitado de outrora, emendei:

“Quem é hoje o Homem do Saco moderno?”

Após um breve silêncio surgiu a primeira resposta:

“Seriam aquelas pessoas que andam puxando uma carrocinha feita de restos de madeira e com rodas de carros velhos, meio capengas que atrapalham o trânsito por onde passam?” Perguntou a mais velha.

“Ele mesmo!” Respondi prontamente e prossegui:

“Só que hoje ele já não é mais tão vilão assim.”

“Agora que não entendeu fui eu!” Disse a mais nova.

“Exatamente isso, se vocês observarem naquele carrinho não está nenhum brinquedo dado por nenhum pai que castigou o filho. Os brinquedos que lá estão foram todos descartados pelas crianças de hoje com seu apetite insaciável por novos brinquedos. Além disso, se vocês olharem bem eles também levam papelão, papel e ferro velho, embalagens Pet, latinhas de alumínio, enfim toda a sorte de materiais recicláveis que ele, diferente dos nós “cidadãos civilizados” jogamos pelas ruas; nós que deixamos sacos de lixo mal fechados pelas calçadas, toneladas e toneladas de lixo reciclável misturado com lixo orgânico, enfim que destruímos o meio ambiente e que deixamos as cidades cada vez mais sujas e feias.” E prossegui no meu eco-discurso:

“Hoje o Homem do Saco tem associação, tem estatuto e tem uma ocupação; trabalha em cooperativas e não anda mais descalço pelas ruas. A sociedade ainda o discrimina, mas ele, diferente de boa parte de nós, evoluiu e apesar de ainda estar à margem dessa sociedade, trabalha, mesmo sem saber, em prol dela, que ainda o segrega.

O Homem do Saco de hoje faz do nosso país o campeão mundial na reciclagem de latinhas de alumínio e de embalagens Pet, aquelas dos refrigerantes, não pelo apelo ecológico, mas sim econômico, pois o nosso lixo bota comida no prato deles, de forma digna e honesta!”

“Pô pai, agora você pegou pesado! Nós não somos assim, não ficamos jogando coisas aqui e ali!”

“Concordo com você, normalmente não somos assim, mas às vezes.....” E deixei o imaginário de cada uma vasculhar sua própria consciência.

“É isso aí meninas, o Homem do Saco passou por um “upgrade”. Quem sabe na próxima versão ele não passe a ser mais cidadão e seja visto pela maioria das pessoas como um cara do bem! Quem sabe se nós olharmos para ele e aprendermos com ele nós também não passemos por essa atualização dos nossos programas de conduta social e comecemos a cuidar mais do meio onde vivemos?”

“É isso aí pai! Urruuuuuu! Mandou bem!” Só faltaram os aplausos, mas acho que a lição foi compreendida! Era a minha deixa para encerrar o papo por ali.

“Muito bem moçadinha, tá na hora de dormir.... não espera a mamãe mandar! Um bom sono pra vocês e um alegre despertar! Escovar os dentes, xixi e cama!”

“É isso aí! Valeu pai. Beijo. Boa noite!”

Tudo parecia calmo, quando minha pequena Fernanda Montenegro olhou para trás e me ameaçou com a voz toda debochada:

“Direto pra cama senão eu vou mandar o Homem do Saco levar o seu notebook embora!”

Belmiro Barrella Jr
Enviado por Belmiro Barrella Jr em 06/07/2007
Reeditado em 06/07/2007
Código do texto: T554126