A Primeira Viagem
Lá estava eu todo garboso. Era 10 de janeiro de 1956. Eu havia estagiado no depósito de locomotivas, desde agosto de 1955, aprendendo todas as tarefas de um ajudante de foguista, de todas as locomotivas a vapor. E, em janeiro de 1956 eu estava pronto para fazer parte das equipes dos trens de passageiros e de cargas.
Devo dizer que o estágio exigia muito boa vontade e aplicação, de todos os pretendentes a um dia ser maquinista. Boa vontade para aprender a fazer tudo de uma locomotiva, como lubrificar as brassagens, colocar graxa nos dois puxavantes, fazer vistoria do cinzeiro, e da caixa de fumaça, onde havia um filtro para deixar passar apenas a fumaça, pois não deveria passar fagulhas, verificar todos os dutos dos areeiros, pois a areia grossa é a vida das locomotivas nas rampas pesadas; examinar os dois injetores de água, pois a água é fundamental para a refrigeração da caldeira; antes da partida do depósito verificar se as grelhas de ferro fundido estavam em ordem. Para esta observação tínhamos de entrar embaixo das locomotivas, mas este era o serviço mais fácil, pois a locomotiva estava estacionada numa valeta falsa, onde cabia um homem em pé.
Assim, fazíamos uma verificação nas grelhas com fogo se não faltava nenhum pedaço de grelha, muito importante para a produção de vapor das locomotivas, cuja pressão deveria ser de cerca de 170 libras, para tração.
Assim, isto tudo virou rotina. Depois de algum tempo éramos em 15 ajudantes, sempre orientados pelo Senhor Genésio de Barros, um maquinista afastado do cargo por motivo de doença. Ele era um senhor de cerca de 50 anos, muito educado, paciente e tinha muita vontade de ensinar. Não havia distinção para ele. Corrigia-nos, a todos, sempre com um sorriso nos lábios, quando não fazíamos as coisas certas.
Ai, num belo dia, ele me disse: “...Laércio, você e o Ari Rossi já estão prontos para ir para a linha, por que com as locomotivas paradas vocês já sabem tudo e tudo o que eu sei passei para vocês. Que Deus vos ajudem..”.
Assim, em 10 de janeiro de 1956 eu fiz a minha primeira viagem como ajudante de foguista. O trem era o P1, Locomotiva 250, que ia de Campinas a Casa Branca. O maquinista era o senhor José. A minha obrigação era dar lenha na mão do foguista e trocar os estafes em todas as estações. Estafe é a autorização para circular de uma estação a outra. Eu fui substituir um ajudante que era fixo daquela equipe e que estava afastado por motivos de doença.
Eu fui o primeiro a chegar ao serviço, ganhava 30 minutos antes da partida do depósito. Mas gastava 1 hora para fazer a minha parte. Então, o remédio era chegar mais cedo. Todos os ajudantes de foguistas novos, antigos ou muito rápidos gastavam o mesmo tempo ou mais.
Quando o maquinista e o foguista chegaram à locomotiva nem me cumprimentaram. Apenas me perguntaram se tudo estava pronto. E ai fomos para a estação engatar no trem de oito carros, 2 breques, 3 carros de 1ª classe e 3 carros de 2ª classe. Notei a frieza como estava sendo tratado. Mas fiz a minha parte durante a viagem até Casa Branca, onde a nossa locomotiva deixava o trem que engatava outra locomotiva e equipe, para seguir até Ribeirão Preto.
O recolhedor levou a nossa locomotiva para o depósito e nos fomos para o alojamento do pessoal de máquinas, onde havia quartos para maquinistas, foguistas e ajudantes. Tudo separado.
No trajeto até o alojamento, o maquinista, que ainda não havia me dirigido a palavra, disse: “...Senhor Rossi, se o senhor tem vontade de amanhã ser foguista e mais tarde ser maquinista, precisa melhorar muito..”. No que foi endossado pelo foguista.
Então, eu que tinha ficado feliz de já ser mais um das equipes de locomotivas, fiquei mudo. Pois para mim eu havia feito a minha obrigação, bem feita. Nada respondi na hora. Voltamos no outro dia com o P2 e nada de anormal aconteceu. Quando deixamos a locomotiva no lenheiro, para o abastecimento, eu disse: “...Com todo o respeito, senhor José, o senhor que é o maquinista e o senhor, senhor Manoel, que é o foguista, têm todo o direito de mandar trocar o ajudante, mas devem apresentar os motivos, para efetivar a troca. Eu não posso pedir para deixar os senhores, pois eu nada represento . Como ambos têm muita experiência era obrigação me ensinar naquilo que eu não sei porque eu tenho vontade de amanhã ser não um foguista, ou um maquinista, mas um bom maquinista.”.
Ai ambos ficaram quietos e meu caráter e firmeza falaram mais alto. Fui ao escalante e perguntei de minha escala para o dia seguinte. E ele me disse:”...A sua escala é o P5 às 9h30 no depósito, o mesmo horário de sua equipe de hoje..”.
Ai fui para casa contente, por que eu era um ajudante correto e leal. Por que de gente falsa, a carreira de máquinas já tinha demais. No dia seguinte era minha obrigação chegar mais cedo e tirar 7 litros de óleo de válvula e 7 de movimento. Era a obrigação do foguista. E quando ele chegou eu disse: “...Os litros de óleo já estão na locomotiva e já fui azeitando o movimento e carreguei o aparelho de óleo. Também já coloquei graxa nos dois puxavantes..”. Ainda acrescentei: “...Que isso eu aprendi no estágio. Peço ao senhor para verificar se tudo está do seu gosto..”. Ele que não havia me cumprimentado, me agradeceu pela antecipação. Ai, com a chegada dele fomos aproveitar a lenha do acendimento. Em cada lado ficava uma pilha de 1 ½ metro de lenha para fazer fogo completo.
Na locomotiva, antes de partir do depósito, ele participou as minhas atividades ao maquinista. Mas o trato não foi diferente da 1ª viagem. Apenas ele disse ao foguista:”...Hoje o trem não para em todas as estações. Muitas vamos passar sem parar. Veja se o ajudante não vai derrubar nenhum estafe.”.
Eu disse ao maquinista: “..Com todo o respeito, se o senhor passar nas estações a até 40 km/h eu garanto que não vou derrubar nenhum estafe..”.
Assim fizemos uma viagem boa. Mas preciso dizer que trocar os estafes era tarefa do foguista e não dos ajudantes. Mas todo ajudante era explorado ao máximo e se quisesse fazer carreira, era fazer e ficar quieto. E assim, completamos 1 mês juntos. Por ignorância ou saudade do ajudante anterior, o tratamento a mim dispensado não havia melhorado. Porém, quis o destino que numa viagem quando voltávamos de Casa Branca, o senhor Manoel teve uma forte luxação no braço direito. Voltávamos com o P6 e não havia como arrumar um substituto para o foguista. Então, de Orindiúva a Campinas eu trabalhei sozinho. Eu puxava a lenha do tender e ia fazer o fogo com a maior perfeição. O maquinista, senhor José, não teve do que se queixar. Não faltou vapor e o nível de água esteve sempre alto na caldeira. Vale salientar que eu era bem mais jovem, e mais forte, fisicamente.
Logo que passamos Aguaí, o senhor José me disse, num tom já mais maleável:...”o Rossi, você quer que eu peça um foguista em Mogi Mirim, para o lugar do Manoel ?..”. Eu respondi: “..O depósito de Mogi Mirim é pequeno e podem arrumar um auxiliar de lenheiro sem pratica de trabalhar em locomotivas. Pode deixar que eu dou conta do recado..”. falei com tanta convicção que o maquinista ficou mais tranquilo.
O trem chegou no horário, em Campinas. Ficamos de folga no dia seguinte, e o escalante me disse: “..Laércio, você vai, a partir de 3ª feira, trabalhar com uma equipe efetiva. Ou seja, maquinista João Nadarque Machado, e o foguista Sebastião José Pedro, com a locomotiva 253, apelidada de camela, como a 250 da equipe anterior, no trem de passageiros também a lenha.
Eu não relatei a ninguém da ocorrência da viagem com o P6, mas dentro de dias a notícia que eu viera sozinho na boca da fornalha se espalhou por todos os depósitos de Campinas, Mogi Mirim, Aguaí e Casa Branca. O maquinista ou o foguista daquela viagem, talvez, tenham dito a algum foguista ou maquinista, e a coisa se espalhou. Mas voltando à minha nova equipe, que não sabia do ocorrido me trataram como a um filho, ou irmão, e trabalhamos 2 anos juntos, até a chegada das locomotivas, diesel-elétricas. GM 12.
Assim, relatei um pouco do que pode acontecer a todos que como eu tinha uma vocação para maquinista. Muita luta, sempre suportando pouco caso, humilhações. Mas a humildade vence sempre e eu sou humilde.