O Mendigo e o Vendedor de Loterias
Naquele sábado pela manhã estava eu sentado sobre a mureta do Banco onde possuo conta. Pretendia sacar algum dinheiro no caixa eletrônico, mas antes resolvi esperar minha esposa que fora a uma Agência dos Correios, dista a uns cem metros avenida abaixo de onde eu me encontrava. O movimento de veículos e pedestres por aquela avenida, na manhã que se iniciava calorenta e seca, era tranquilo e modorrento.
Com a previsível demora da senhora minha esposa, visto que as Lojas das imediações começavam a abrir suas portas comecei a observar despretensiosamente dois profissionais liberais em ritmo de trabalho, próximos de onde eu estava.
O primeiro deles se tratava de um esquálido e macilento cavalheiro sentado sobre a suja calçada da avenida e encostado sobre uma pequena árvore de frente ao Banco. A distância entre mim e ele era de apenas a largura da calçada. O cidadão em questão tinha os cabelos e barbas esfiapados e tão imundos quanto o cobertor que lhe cobria as costas. Seus olhos eram esbugalhados, porém versados na arte de vitimar-se. Aquela figura humana logo ali em minha frente era visivelmente um viciado em craque que pedia esmola aos passantes. Desde então, passei rapidamente da introspecção ao entretenimento ao ver o profissionalismo laboral daquele homem.
Ele estendia as mãos justapostas, palma com palma, e em forma de súplica exclamava aos raros pedestres: - “pelo amor de Deus! Uma moedinha para o meu café da manhã!” Não atendido, maldizia aquele que supunha ser um altruísta. Ao contrário, quando recebia uma moeda, desejava um “Deus lhe pague!” E, dependendo da distância, beijava os pés do colaborar com seu “café da manhã”. Seu rosto caveiroso, sulcado e triste nessa hora deixava escapar um breve sorriso, momento em que se podiam ver alguns raros, negros e cariados dentes, supostamente decompostos pela inexorável e poderosa composição química da tóxica fumaça do craque.
O segundo personagem encontrava-se, mais distante, porém, às minhas costas, sob a erguida calçada de propriedade do Banco. Eu, até o momento, apenas lhe ouvia a oferecer seus produtos. Pois estava enlevado em observar o profissionalismo do homem em minha frente. Mas mesmo assim era impossível não prestar atenção:- “tio (ou tia), leva um bolão da Mega? Está acumulada!” - “Tiozinho (tiazinha), Leva?”
Neste ínterim, chegou a mulher, para quem um dia jurei amor eterno. Sem antes, porém, ter como alguns outros, estendido uma moeda ao cavalheiro viciado em craque, sob meu olhar anuente, bem como do Todo-Poderoso, criador daquela alma.
- Já foi ao Banco? Perguntou-me, minha esposa. – Ainda não, estava esperando por você, disse.
Subimos uma escada e já estávamos próximos à porta do Banco e do injurioso vendedor de loterias. Ao passarmos, lá veio ele: “Tio, leva um bolão? Está acumulada!” Adentramos ao Banco sem dar-lhe ouvidos. Ao sairmos, lá veio ele novamente: “Tio!”. Então resolvi parar e ensinar-lhe de como um vendedor deveria tratar com mais respeito os possíveis clientes. E de que tio, tiozinho e tia não eram os pronomes de tratamento adequados. Foi quando ele se insurgiu contra mim de maneira estúpida: - “e como vou lhe chamar se não sei seu nome?” Disse furioso. – Respondi-lhe que quando não se sabe o nome de uma pessoa, o mais correto é trata-la por senhor, senhora, conforme o caso. Nesse momento o digno vendedor, levantou os braços e mandou-me às favas. Calamo-nos e deixamo-lo para trás proferindo, claro, mais um turbilhão de blasfêmias contra nós e o mundo.
Ora, este segundo profissional liberal, ao contrário do outro se trajava bem; estava limpo; seus dentes não eram podres, mas era impuro e pestilento por dentro. Caso não fosse assim, teria tudo para dar-se bem na profissão de vendedor.
Ao sairmos do Banco lá estava o primeiro cavalheiro. Só que agora em pé, e em ato contínuo, veio em nossa direção. Vimos que mancava. - “Senhor, pelo amor de Deus...”Em frações de segundo raciocinei da seguinte forma: um homem dessa idade já está a beira da morte e não há mais conserto. Se fosse uma criança não daria nada para alimentar um vício tão asqueroso como esse. Imediatamente tirei do bolso uma nota de vinte reais e dei-lhe com gosto, pois assim morrerá feliz, pensei. Eis, que o homem olhou... Olhou... Simplesmente não acreditava. De repente, saiu correndo, gritando e pulando, com a nota na mão, como se houvera ganhado na loteria. Inclusive, esqueceu-se de mancar.
Pegamos o carro e ultrapassamos o velho decrépito. Paramos em uma farmácia e lá estava um amigo meu, Secretário de Turismo do Município. Nesse momento passa o homem em frente à farmácia gritando, ainda com a cédula amarelada na mão direita. Meu amigo, assustado, perguntou-me se eu sabia o que estava acontecendo. Contei-lhe brevemente o ocorrido, entre o sujo de corpo e o sujo de espírito, bem como meu jeito peculiar de contemplar os homens de espírito elevado.
Pois bem, com o passar do tempo fiz amizade com o “Seu Samuel” como passei a chama-lo, após me contar que esse era seu nome, apesar de todos o tratarem pelo pejorativo codinome de “Perna”.
Mesmo sem dar-lhe um centavo sempre recebo suas bênçãos e sinto-as que são do fundo do seu grandioso coração.
Passado um bom tempo após essa insólita ocorrência, encontrei-me novamente com meu amigo, Secretário de Turismo do Município, o qual havia voltado recentemente de um Congresso Internacional de Turismo, ocorrido em Madri – Espanha. Os congressistas, dentre os quais, Secretários de Turismo, Agentes de Viagens, etc., segundo ele, eram de todas as partes do mundo, e unânimes em reclamar do governo de seus países. Os desabafos em pauta tratavam-se da falta de interesse orçamentário em destinar verbas para fins de fomento ao turismo ou as chamadas Indústrias sem Chaminé, que tantas divisas e empregos geram para um país.
Então, quando chegou a vez de meu amigo falar sobre a pauta em discussão, ele simplesmente disse: “Eu não posso reclamar de nosso governo, principalmente do municipal, pelo simples fato de que sabemos pedir!” E contou-lhes a história do Mendigo e do Vendedor de Loterias.
Esta “fábula”, hoje, é contada nos mais variados idiomas em Congressos e Eventos Turísticos Internacionais. “É preciso saber pedir!”