Na Paquera, com Montaigne
Por indicação de um amigo, sujeito bastante estudioso, tirei os ensaios de Michel De Montaigne da estante. Só que os coloquei no carro, para ler entre uma e outra atividade.
Quando falei ao meu amigo sobre o novo habitat do pensador francês, chegou a sorrir, com certa carga de censura - ao mesmo tempo irônica e divertida. Depois me explicou a razão de seu espanto: sublinhando a opinião de autoridades como a do crítico norte-americano Harold Bloom, ele considera Montaigne um dos grandes sábios de todos os tempos - alguém que nos põe em sintonia com boa parte do que "de melhor a humanidade já produziu". Com muita razão, portanto, acredita que os ensaios são metade da jornada a caminho do conhecimento que expande, aprofunda e liberta o intelecto para um julgamento mais acertado sobre a aventura humana.
Consequentemente, a idéia de que tal tesouro esteja atirado ao banco vulgar de um automóvel...e seja lido no estacionamento, em salas de espera ou na mesa de uma lanchonete, deixou esse meu conselheiro intelectual ligeiramente contrariado. Não me disse, mas imaginei-o sugerindo o lugar ideal para se ler o sumo do pensamento de Montaigne: uma varanda decorada com objetos de arte onde o sol projetasse sombras de contorno clássico ao encontrar o tênue obstáculo das folhagens.
Quem me dera fosse possuidor de uma dessas vilas!
Falo das habitações italianas, nas quais Montaigne certamente se hospedou por ocasião de várias viagens. Imagino que num lugar assim, as emanações do saber cristalino e despido de empáfia me abasteceriam até quando abandonasse o livro sobre o aparador, absorto em longas inspirações...
...Não. Minhas leituras de Montaigne têm lugar em meio à balbúrdia humana e tecnológica do século XXI, a considerável distância histórica e geográfica do Renascimento. É certo que Montaigne foi obrigado a recolher-se à torre de seu castelo em Bordeaux - o Mirante do Sábio – dedicando-se então à leitura dos clássicos greco-romanos, e a seus próprios escritos. Fugindo da atmosfera viciosa e falsa da sociedade da sua época, teve nesse observatório a calma e o silêncio necessários à elucubração de um iluminado ceticismo. Leio em resenha da enciclopédia eletrônica Terra: “Era o retiro secular, do ócio útil, proveitoso - atividade já recomendada por Aristóteles”.
Embora burguês de nascimento e posses, Montaigne tornou-se nobre com castelo e tudo. Quanto a mim, tenho de me contentar em ouvir todo o tipo de ruído enquanto procuro aquietar a mente, de modo que a prosa do humanista francês revele, na clareza de detalhes e na graça estilística, a paisagem humana em dimensões que vão do épico ao pessoal: dos campos de batalha e salões da diplomacia à taverna e à sala de jantar.
Só uma coisa me distrai de Montaigne, o que talvez justifique a opinião que ele próprio tinha sobre o objeto da distração: o trânsito constante de mulheres, em especial no ventilado hall de um edifício onde me detenho duas vezes por semana. Por ali passam moças do melhor jaez, mas, como as do tempo de Montaigne, avessas à ouriversaria intelectual, e mais afeitas à ouriversaria ela mesma - além dos demais recursos da estética.
Se estão ao lado, é comum mostrarem-se curiosas em relação ao conteúdo das minhas leituras, numa espécie de sondagem. Infelizmente os resultados não costumam combinar mais tarde com o leque de interesses que abanam por essa nossa superaquecida paisagem pós-moderna. Menos cético, embora buscando inspiração no mestre, lanço-lhes frases de torneio elaborado, ansiando, em resposta, vislumbrar lampejos do espírito vindos de algum lago secreto dessas maviosas criaturas. Inútil.
Resta-me ver flutuando, na brisa do pátio, citações
de Cícero e versos de Virgílio em batalhas encarniçadas contra os exércitos da fala oca de Paulo Coelho e Débora Secco.
Tudo bem. Talvez seja esse o grande mérito da minha atitude pouco cerimoniosa para com a resplandecente arca do pensador francês: retirá-lo de sua confortável reclusão, de seu auto-exílio luxuoso...Trazê-lo de novo para o campo de batalha, a fim de que prove mais uma vez sua coragem, astúcia e lealdade à nobre causa da cultura e do pensamento.