A culpa é da gramática
Desde criança que Ana tinha a mania de corrigir os outros, mas para sua surpresa, se apaixonou por um rapaz, quase totalmente, ignorante. Segundo ela, seus olhos a encantaram. Ana sempre gostou da cor verde. Gostava de ficar horas e horas venerando a natureza. E, quando viu Marcelo, não deu outra, foi amor à primeira vista.
A garota adorava admirar o seu namorado, em contrapartida, quando Marcelo abria a boca para falar-lhe algo, ela logo previa que iam começar a discutirem, pois sempre que ele iniciava uma conversa e se empolgava, Ana sempre corrigia de cada dez, seis palavras suas. Assim começavam a intriga. Marcelo a julgava nunca tê-lo amado e não sabia do motivo de estarem juntos, pois sua amante jamais lhe contara o real motivo de sua paixão. Ana despertou no momento em que seu namorado falava “Vi ela ontem”.
 Amor, Viela é uma rua.
 Oi, como assim?
 Nada, esquece. É que se trata de um cacófato.
 De um ca o que?
 Cacófato, um vício de linguagem que deve ser evitado conforme a Língua Portuguesa, pois o seu som fica estranho, às vezes, ridículo ou obsceno.
 Eu sei... você nunca vai parar de corrigir eu. Não sei ainda porquê estamos juntos.
 Desculpe-me amor, é que...
Era sempre assim, Ana nunca se controlava diante de pequenas inadequações vocabulares da língua. E Marcelo, seu namorado, ficava triste e sem entender o seu relacionamento. Certo dia, a fim de impressionar a amante, o garoto resolve passar o dia estudando a gramática e quando sentiu que absorveu todo o conteúdo, foi a procura de sua dulcineia.
 Amor, desculpe-me por não ser o melhor namorado do mundo. Desculpe-me por não ser o que você imaginava.
Ana achou estranho o modo de o namorado pronunciar as palavras, mas estava adorando. Ela sempre idealizava namorar um rapaz de olhos verdes e culto.
 Eu é quem deveria te pedir desculpas, prometi não intervir no seu modo de falar, pois sempre brigamos. Você não gosta quando te chamo atenção. Sinto muito.
 Tudo bem, agora deixar-me-ei você me instruir. Não quero perdê-la por minha ignorância. Amor?
 Oi meu bem, você não vai me perder...
 Você gostou do meu “deixar-me-ei”? aprendi hoje!
 Claro meu amor, além de tudo, amo seus olhos.
Marcelo estava deslumbrante ao ver sua namorada alegre. Ele passara o dia inteiro estudando, formulando frases, tudo para não decepcionar seu amor. Mas a medida que a conversa ia fluindo, o rapaz perdia a noção da gramática.
 Amor, dê-me uma mão, por favor. Obrigado por cada segundo que passas comigo. Você é meu mundo, minha moça fada. Eu não havia dado tanta importância aos estudos porque o que importa é o que sentimos e o que os outros entendem.
Mentalmente, Ana contava os erros que Marcelo falava, mas não queria importuná-lo com isso.
 Tudo bem amor, mas...
 Mais o que?
 Nada, deixa para lá.
 Pode dizer meu amor, entre eu e você não tem segredo. A gente resolvemos tudo.
 É porque você fala muitos cacófatos, em uma única frase você falou quatro. E agora foi um erro de concordância. Sinto muito, mas não consigo não corrigi-lo.
 Ok. Odeio cacófatos. Mais, eu sei que a culpa não é sua, a culpa é da gramática, ela que nos regra. E infelizmente somos servos dela. É como se ela fosse a dona da língua, mas não é. E eu não quero depender dela. Quero ser livre. Livre igual aos pássaros que não se preocupam com os cantos deles, e são a melhor melodia. Livre igual as flores. Ninguém pintou elas nem botam roupas nem maquiagem e são as mais lindas que os campos podem ter. Livre igual ao vento que vem quando quer e não clama por ninguém o povo é que clama por ele. Vamos ser livres, meu amor. Cada um terá um código que só basta você me entender e eu entender você. Livre igual nossos corações, eles não falam nada, não obedecem nenhuma regra, mas se entendem.