SELMA.
Selma já tinha feito seus estragos, mas a manhã estava linda.
Depois de tudo aquilo eu não consegui dormir direito naquele resto de noite que sobrou, então me levantei cedo, preparei o café para as crianças e levei para a minha preta o café na cama como ela gosta. Tomei meu pretinho sem açúcar e fui para a feira como faço todas as manhãs de finais de semana. Fiz a minha oração mas meu humor já estava agressivo, a trilha sonora era Jamaica Revolution, Dub jamaicano estourando os alto-falantes.
Mal estacionei o meu carro como é de costume em uma rua próxima a feira, um menino mulato já me pediu...
_ Tio posso cuidar do carro?
Aquilo já não me agradou, eu consenti com a cabeça mas sabia que aquilo nada tinha em haver com cuidado, mas fiz o que me coube, ao retornar com a minha sacola da feira o menino quis me ajudar, desta vez eu não aceitei mas o agradeci e lhe dei a sua moeda.
Parti em direção ao atacado para comprar as coisas que faltavam para a semana que ia começar. Eu estava agoniado e já sabia o motivo, tentei me distrair com a visão da paisagem urbana, com as damas lindas nos passeios, mas não teve jeito...
A lembrança daquela loja que eu havia ido no dia anterior com a minha esposa não saia da minha cabeça. Havia na loja seis posters de crianças evidentemente vestindo as roupas da loja em questão, três modelos mirins em pauta, sendo duas meninas e um menino que diga-se de passagem eram lindas e lindo. Em cada um de quatro posters tinha três fotos de modelos brancos, ora eram duas fotos da menina branca e uma do menino e vice versa.
Os outro dois posters também tinham três crianças, mas a foto da menina negra que era uma verdadeira princesinha aparecia apenas uma vez em cada um.
Aquilo de cara já me chamou a atenção e eu não havia ainda assistido Selma, mas já mexeu com o meu íntimo, principalmente pela estratégia da loja de me fazer gastar mais ainda com a troca do conjunto de roupas, pois não tinha o tamanho ideal para o meu sobrinho, então fui obrigado a comprar outro produto. Eu fiquei fudido de raiva, além da loja ser supostamente quase uma exclusividade para gente branca, tivemos que deixar mais dinheiro lá. Cheguei ao supermercado e logo de cara quando eu estava no corredor dos produtos de limpezas, uma senhora que estava com seu filho me abordou e me disse.
_ Este mercado é complicado, em uma semana você acha o que precisa, na semana seguinte não tem nada... Então eu disse a ela que provavelmente ela encontraria o produto mais caro em um mercado supostamente concorrente e que faz parte do mesmo quartel.
Ela concordou balançando a cabeça, saímos então bicudos cada um para o seu lado.
Com certeza o dia prometia, continuei fazendo minhas compras e anotando os preços em minha lista para não ser surpreendido no caixa como acontece algumas vezes...
Parei em um corredor para revisar a minha lista e tive uma sensação de aproximação, me voltei lentamente para trás e avistei um jovem negro alto caminhando em minha direção falando alguma coisa que eu só compreendi quando ele passou, ele estava cantarolando um samba, “ as coisas nem sempre são como a gente quer”. Ele me cumprimentou e foi fazer o seu trabalho. No mesmo corredor em que estávamos ouvi uma voz em tom alto e agudo, autoritariamente um homem abordou o jovem e começou a falar mais alto ainda, ele o mandou fazer algumas coisas e continuou falando alto, querendo ser visto. Eu vestido de rebeldia, com uma camiseta com as cores da união africana ( as cores tradicionais do reggae), fiquei um pouco afastado e observando a abordagem daquele homem vestindo camiseta rosa, falando alto e gesticulando, querendo chamar a atenção. Continuei olhando para aquela cena, e ele ao perceber que eu fiquei lhe encarando, ficou sem graça e foi saindo do meu campo de visão, assim meio contrariado. O mais interessante é que o jovem não parou de fazer o que estava fazendo para ouvir o que aquele homem dizia, e ele falou tudo aquilo olhando para mim e para o corredor. Ele queria realmente chamar a atenção de quem estava ali... Pensei por alguns instantes, então me aproximei do jovem e disse a ele que todo trabalho é digno, mas eu ainda verei muitos de meus irmãos trabalhando e mandando também... Ele me agradeceu e me disse que depois daquilo que eu lhe disse ele havia ganhado o dia.
Moralmente falando eu acho que sim, justamente falando acho que não...
Gabriel Luz Rocha
*** Titulo em alusão ao filme Selma: Uma luta pela igualdade ***
*** (Martin Luther King Jr) ***
Direção: Ava DuVernay
EVOLUZ...