PEGA LADRÃO!!!
Hoje, fui apanhado de maneira insidiosa pelas minhas lembranças enquanto olhava para tela em branco do Word. Elas têm por hábito abduzirem-me ao passado remoto, mas logo me aduzem ao presente. Deixando em minha mente fragmentos, estilhaços de pequenas ou grandes aventuras. Cabe a mim, fazer um grande esforço em juntar esses fragmentos e estilhaços e montar um grande quebra-cabeça.
Viajei ao passado há uns 35 anos mais ou menos, para cidade onde nasci – Abaetetuba, Pa. E revivi o início de meu amor pela leitura. Sempre tive o vício pela leitura, embora tenha ficado preguiçoso por alguns e não poucos anos, no quais não conseguia ler absolutamente nada. Mas mesmo assim sempre fui bibliófilo. Sempre me peguei às espreitas de um amor proibido, por algum livro que não me pertencia, um adultério literário.
Ali estava eu, estudando minhas primeiras séries iniciais no “Grupo Basílio de Carvalho”, logo pela manhã bem cedo. Sempre fui muito traquino, peralta mesmo, daqueles que sempre faziam visitas à sala da direção de maneira coercitiva. Não gostava muito de estudar, gostava mesmo de ler gibi, historinhas inocentes. Amava a turma do Tio Patinhas, Pato Donald e seus sobrinhos: Huguinho, Zezinho e Luisinho. Eu me identificava com eles, pois eram peraltas iguais a mim, eram órfãos também, pois tinham sido abandonados pela mãe, a qual os deixou com seu tio Donald, e o pai deles é de natureza desconhecida. Será que todo órfão tende a preencher a falta dos pais com peraltice? Não sei dizer, só sei dizer que ria alegremente diante das aventuras desses meus heróis da infância e ficava pensando em imitá-los.
Ali estava eu de novo, era uma bela final de manhã e final do turno escolar. Era hora de voltar para casa, hora do almoço. Mas nunca chegava na hora certa, sempre me atrasava, pois no meio do caminho, não, não havia uma pedra no meio caminho, o que havia era uma livraria. A livraria da Dona Edna. Acho que era a única da então cidadezinha, hoje cidade grande. Tinha por costume todos os dias entrar nessa livraria e ficar, se dependesse de mim, por horas a fio, olhando as revistas em quadrinhos.
Mas essa minha vontade era quase sempre interrompida pela presença policial da D. Edna, que já tinha a frase exclamativa feita para dirigir a mim: “Já chega de ficar olhando! Não vai comprar mesmo! Vá já para o colégio! Lógico que dependendo do horário a última exclamação tinha destino diferente, ou seja, “Vá já para sua casa!” Eu tinha que obedecê-la, pois a cidade era pequena e todos se conheciam pelo sobrenome de família, e comigo não era diferente, ela sabia meu nome e endereço, por isso qualquer falta de respeito o Boletim Circunstanciado era registrado em casa sem dúvida alguma e, por conseguinte, a surra nos lombos era certa.
Mas nesse final de manhã a coisa foi diferente. Havia chegado na livraria um Almanaque do Tio Patinhas. Ele de capa dura, cores e papel reluzentes, os desenhos na capa pareciam ter vida própria. Era uma revista de outro mundo. Peguei para olhá-la, mas ela estava com um invólucro transparente, cerceando o meu direito de ler. Achei aquilo absurdo, pura crueldade dos adultos para com as crianças.
Fui até ela com a cara mais lavada possível e perguntei-lhe se poderia abrir para olhar por dentro. Disse-lhe que se gostasse, voltaria para comprar. Ela sabia que eu estava mentindo, pois se dependesse de mim, ela já teria ido a bancarrota. Ela simplesmente olhou-me, e usando do seu direito de permanecer calada, arrancou de minhas mãos a revista e andou desdenhosamente até ao local de onde eu houvera tirado a revista e colocou-a no lugar.
Eu tinha duas opções para ler o tão desejado almanaque: a primeira era convencer a um dos meus primos a comprar e me emprestar (as revistas que lia eram sempre emprestadas ou doadas por alguém); a segunda, era eu furtar. Nessa hora, os dois anjinhos pousaram em meus ombros, um anjinho mal, de um lado; e um anjinho bom, de um outro. E duelo começou. Foi um duelo rápido e sem paridade de armas, pois eu já havia tomado a decisão do que fazer, enquanto ela caminha até a prateleira para devolver o almanaque.
Caminhei a uma certa distância dela. Assim que ela colocou a revista no lugar, eu passei pela porta da entrada e fui para casa. Entrei em casa, esgueirando-me pelas paredes a fim de que ninguém me visse. Deixei os meus cadernos e sai correndo em direção a livraria antes que fechasse.
Entrei rapidamente e lá estava a D. Edna sentada em sua cadeira. Ela olhou meio que assustada, mas com um certo sarcasmos de adulto no olhar. Não sei o que passou na cabeça dela, mas uma coisa eu tenho certeza: não passou que iria comprar a revista.
Fui direto à prateleira onde se encontrava o almanaque, meu tão desejado almanaque. Peguei-o e sai correndo em desabalada carreira. Imaginei-me o papaléguas correndo. Mas ainda pude ouvir os gritos de D. Edna: “Jesus! Jesus! Ei, Jesus, volta!” Não, ela não estava clamando aos céus. Jesus é meu nome. Continuei correndo e correndo até sumir de sua vista e de todos quantos me conheciam, dedos-duros em potencial.
Escondi-me no fundo de um terreno baldio e passei o resto do dia lendo e deliciando-me com as histórias. Após terminar de ler, era hora de voltar para casa e levar aquela senhora surra, pois sabia que D. Edna não me perdoaria e iria direto à minha casa para realizar a notitia criminis.
Foi a única surra que já levei em toda minha vida com a maior satisfação, satisfação de dever cumprido.