Assim ou...nem tanto 29
Paixão
Deste alto vejo tudo e o que não vejo, invento. Há muito tempo que aqui estou, imóvel, a ver passar a mudança. De tão firme que sou, corro riscos de me tornar pedra, um homem de pedra, uma eternidade potencial mas vazia. Há quem diga que as pedras podem fazer água, guardar diamantes, cuspir pepitas de um ouro velho de muitos quilates. Eu, porém, ainda quente de carne, ossos e sangue o mais que quero é sair de mim e seguir, nem importa por onde, até à beira do começo e, nele, ser outra vez a pureza, a ingénua certeza da alegria. Como um novo andar pelo mundo, cuidadoso de passos para não errar, leve , livre, desligado. Ah, quem me dera não estar preso , quem me dera voar, quem me dera seguir as palavras da tua boca e andar, como elas, em todos os destinos. As mais das vezes sereno, quando sussurras e adormeço nas voltas do teu ninar. Aí estou menino e durmo sobre as nuvens da tua ternura. E durmo e durmo. Durmo até que, áspera, a vida que dizes me acorda para viver. Saio de madrugada, ainda mole da noite, ainda seco de invenção e vou para onde me ditam, estou onde me pesam e volto para te ouvir palavras de amor que, avaramente, os teus lábios não dizem. E tudo me empurra para sair, para mudar, para deixar que outros olhos, outros lábios e outro corpo me levem ao mar, ao céu, a um deserto em que estarias tu no meu lugar de pedra e eu a dizer todas as palavras da determinação. E estarias tu no alto a ver tudo mas a cumprir a minha condenação: vontade de me amar, paixão.