Bem-vinda seja a estação de nossas chuvas
Ela chegou pela madrugada, sem nada avisar. Parceira da noite, trazida pelos ventos que costumam soprá-las, ela veio e desceu como uma benção sobre os nossos sonhos e sonos restauradores.
Em apartamento, com janelas fechadas, não é fácil ouvir o som; o mesmo som, inconfundível, que embalou os dias de nossa infância e juventude, tocar os vidros e sussurrar nos telhados das casas que ainda resistem, em torno de nós, no Renascença.
Os pássaros da noite, já dormiam. Talvez, só mesmo as corujas, que vigiam e se alimentam na escuridão da noite, puderam testemunhar esse acontecimento. Madrugada de quarta-feira, dia vinte, deste janeiro que descortina as esperanças do ano que se inicia, e marca o início da estação das chuvas.
Mas posso dizer que ouvi. Por isso, dou meu testemunho. O som da chuva, que chegou na mansidão da noite escura, atravessou a madrugada e veio encontrar a manhã, com aquele vento fresco, com o cheiro de terra molhada, e com os tons cinzentos dos dias com que costuma se vestir o nosso inverno.
Quando criança e, no inicio da adolescência, essa estação das chuvas, para nós, era cheia de ritos e símbolos, de sabores e cheiros; de recolhimentos e aconchegos; de alegrias e medos.
Entre os ritos, tenho a lembrança clara e eloquente, da pressa de minha mãe, meu pai, meu avô, minhas irmãs - uns ou outros - para cobrir os espelhos, com lençóis, quando aquelas chuvas pesadas, estrugindo em trovões e raios, pareciam partir o céu em pedaços.
Entre os sabores e cheiros, resplende o cheiro e o sabor das canjicas e das pamonhas, feitas com milho verde, ralado, e preparadas em casa mesmo, sob o carinho e a dedicação de mamãe, ajudada por tia Alzira. Em dias alternados: canjica ou pamonha. E a trabalheira que dava preparar tudo isso: ralar coco e milho consumia a maior parte do tempo, nesses preparos.
Além disso, à noitinha, quando as luzes dos postes já estavam acesas e as chuvas tinham cessado, os pregoeiros anunciavam, em alto e bom tom: “-Pamonha tá quentinha. Chega na pamonha”! Quando não tinha em casa, era bom sentir esses sabores, conduzidos através das ruas até a porta de nossas casas, em bacias de alumínio.
Os recolhimentos e aconchegos vinham por conta das chuvas torrenciais que, às vezes, duravam dias seguidos e nos impediam de ir à escola, pois esse trajeto era sempre feito a pé, em companhia de meu avô. Ficávamos reclusos em casa. Os aconchegos eram uma consequência natural, com o tempo mais frio e sem televisão, naquele tempo.
Entre as alegrias e medo estão os banhos na chuva, nas bicas do quintal de nossa casa; os barquinhos de papel que fazíamos para soltar nas sarjetas, quando as enxurradas já estavam brandas, e era possível acompanhá-los pela tarde cinzenta, até seus naufrágios. Isso era só alegria.
Como era alegria voltar da escola, após uma chuva de pouca duração, e vir com os pés nas sarjetas, chutando as águas que nos subiam pelas pernas. Aquilo tinha a atração de uma aventura inofensiva. Mas, em casa, era repreensão severa e castigo de privações.
Os medos ficavam por conta da “boca-de-lobo”, que ficava na Rua do Alecrim, no trajeto da escola, por onde as enxurradas desciam para alcançar o mar. Cair ali seria morte certa, sumir pela enorme tubulação de águas e nunca mais ser encontrado com vida. Ouvíamos isso em casa.
A chuva, que veio com a madrugada, impediu que as garças fizessem seu itinerário matinal. Elas que, todas as manhãs, voam sobre nosso prédio e sobre as casas do nosso bairro, e vão e vêm, tendo a lagoa como ponto de referência. Nem os bem-te-vis trouxeram a sinfonia de seu canto.
Em mim, uma vontade de celebrar esta manhã, ungido por meu “meu amor”, uma vontade de escrever e brindar: Bem-vinda seja a estação de nossas chuvas. Nosso inverno é chegado.
Em apartamento, com janelas fechadas, não é fácil ouvir o som; o mesmo som, inconfundível, que embalou os dias de nossa infância e juventude, tocar os vidros e sussurrar nos telhados das casas que ainda resistem, em torno de nós, no Renascença.
Os pássaros da noite, já dormiam. Talvez, só mesmo as corujas, que vigiam e se alimentam na escuridão da noite, puderam testemunhar esse acontecimento. Madrugada de quarta-feira, dia vinte, deste janeiro que descortina as esperanças do ano que se inicia, e marca o início da estação das chuvas.
Mas posso dizer que ouvi. Por isso, dou meu testemunho. O som da chuva, que chegou na mansidão da noite escura, atravessou a madrugada e veio encontrar a manhã, com aquele vento fresco, com o cheiro de terra molhada, e com os tons cinzentos dos dias com que costuma se vestir o nosso inverno.
Quando criança e, no inicio da adolescência, essa estação das chuvas, para nós, era cheia de ritos e símbolos, de sabores e cheiros; de recolhimentos e aconchegos; de alegrias e medos.
Entre os ritos, tenho a lembrança clara e eloquente, da pressa de minha mãe, meu pai, meu avô, minhas irmãs - uns ou outros - para cobrir os espelhos, com lençóis, quando aquelas chuvas pesadas, estrugindo em trovões e raios, pareciam partir o céu em pedaços.
Entre os sabores e cheiros, resplende o cheiro e o sabor das canjicas e das pamonhas, feitas com milho verde, ralado, e preparadas em casa mesmo, sob o carinho e a dedicação de mamãe, ajudada por tia Alzira. Em dias alternados: canjica ou pamonha. E a trabalheira que dava preparar tudo isso: ralar coco e milho consumia a maior parte do tempo, nesses preparos.
Além disso, à noitinha, quando as luzes dos postes já estavam acesas e as chuvas tinham cessado, os pregoeiros anunciavam, em alto e bom tom: “-Pamonha tá quentinha. Chega na pamonha”! Quando não tinha em casa, era bom sentir esses sabores, conduzidos através das ruas até a porta de nossas casas, em bacias de alumínio.
Os recolhimentos e aconchegos vinham por conta das chuvas torrenciais que, às vezes, duravam dias seguidos e nos impediam de ir à escola, pois esse trajeto era sempre feito a pé, em companhia de meu avô. Ficávamos reclusos em casa. Os aconchegos eram uma consequência natural, com o tempo mais frio e sem televisão, naquele tempo.
Entre as alegrias e medo estão os banhos na chuva, nas bicas do quintal de nossa casa; os barquinhos de papel que fazíamos para soltar nas sarjetas, quando as enxurradas já estavam brandas, e era possível acompanhá-los pela tarde cinzenta, até seus naufrágios. Isso era só alegria.
Como era alegria voltar da escola, após uma chuva de pouca duração, e vir com os pés nas sarjetas, chutando as águas que nos subiam pelas pernas. Aquilo tinha a atração de uma aventura inofensiva. Mas, em casa, era repreensão severa e castigo de privações.
Os medos ficavam por conta da “boca-de-lobo”, que ficava na Rua do Alecrim, no trajeto da escola, por onde as enxurradas desciam para alcançar o mar. Cair ali seria morte certa, sumir pela enorme tubulação de águas e nunca mais ser encontrado com vida. Ouvíamos isso em casa.
A chuva, que veio com a madrugada, impediu que as garças fizessem seu itinerário matinal. Elas que, todas as manhãs, voam sobre nosso prédio e sobre as casas do nosso bairro, e vão e vêm, tendo a lagoa como ponto de referência. Nem os bem-te-vis trouxeram a sinfonia de seu canto.
Em mim, uma vontade de celebrar esta manhã, ungido por meu “meu amor”, uma vontade de escrever e brindar: Bem-vinda seja a estação de nossas chuvas. Nosso inverno é chegado.