Um sonetista de batina

     Tenho medo de escrever sobre poetas.
      Encontro dificuldade na escolha de palavras para, na minha modesta prosa, traçar, com irretocável precisão, seus perfis. 
       As poucas vezes a que fui levado a escrever sobre qualquer dos nossos vates, restou-me, ao final,  a  sensação de não ter dito o mínimo desejável sobre ele, e fiquei frustrado...
       Nos cem anos de Manuel Bandeira, o saudoso dom Marcos Barbosa, um  beneditino poeta, escrevendo sobre o fantástico Manu, compara os poetas a Deus. 
       Existem poetas, porque maravilhosos, não podem ser esquecidos. É o caso do padre Antônio Thomás, um príncipe da poesia cearense, nascido no dia 14 de janeiro de 1868, na simpática cidade de Acaraú. 
       Estudou no seminário de Fortaleza onde, em 1891, chegou ao presbiterato.  Ordenou-se, e continuou fazendo versos. 
       Não se tratar de um poeta  de u´a biografia robusta, recheada de títulos e honrarias. Dois títulos, entretanto, o fizeram conhecido e venerado no seu Ceará: o de padre e o de poeta.
       Seus biógrafos deixam transparecer que ele nunca permitiu que o sacerdote anulasse o poeta e que o poeta suplantasse o sacerdote. O padre e o vate estiveram  juntos, em uma cumplicidade saudável, fecunda, santa...
       Admirado e aplaudido como o maior sonetista alencarino do seu tempo, ainda assim, o padre Antônio Thomás nunca permitiu que seus sonetos fossem "enfeixados em livro". 
       Não conseguiu, porém, impedir que o Ceará, num ato concreto de justiça ao filho ilustre, lhe conferisse, em 1924, o título de "Príncipe dos poetas cearenses".
       Transcrevo, aqui, três dos seus melhores sonetos. Os mais polêmicos? 

                Contraste

     Quando partimos no verdor dos anos,
     Da vida pela estrada florescente,
     As esperanças vão conosco à frente,
      E vão ficando atrás os desenganos.

     Rindo e cantando, célebres, ufanos, 
     Vamos marchando descuidosamente;
     Eis que chega a velhice, de repente,
     Desfazendo ilusões, matando enganos.

     Então, nós enxergamos claramente
     Como a existência é rápida e falaz,
     E vemos que sucede, exatamente,

     O contrário dos tempos de rapaz:
     - Os desenganos vão conosco à frente,
     E as esperanças vão ficando atrás.

                             * * *

     Noite de núpcias

     Noite de gozo, noite de delícias,
     Aquela em que a noiva carinhosa,
     Vai do seu noivo receber carícias
     No leito sonre a colcha cor de rosa.


     Sonha acordada coisa fictícia,
     Volvendo-se sobre o leito, voluptuosa,
     E o anjo de amor e de carícias
     Fecha a cortina tênue e vaporosa.

     Ouvem-se beijos tímidos, ardentes,
     Por baixo da cortina assim velada, 
     Em suspiros tristes e dolentes.

     Se fitássemos a noiva agora exangue,
     Vê-la-íamos bem triste e descorda
     E o leito nupcial banhado em sangue.

                              * * * 

     A meretriz


     Essa mulher de face escaveirada
     Que vês tremendo em ânsias de fadiga
     Estendendo a quem passa a mão mirrada
     Foi meretriz antes de ser mendiga.

     Em breve fugiu-lhe a sorte airada
     A mocidade, a doce quadra amiga
     E ela se viu pobre e desgraçada
     Antes de tempo, a tanto o vício obriga.

     Ontem, do gozo e da volúpia ardente
     Fosse a quem fosse dava a qualquer hora
     O seio branco e o lábio sorridente.

     Hoje, triste sina, embalde chora
     Pedindo esmola àquela mesma gente
     Que de seus beijos se fartara outrora.


                                    * * * 



       No dia 16 de julho de 1941, um colapso cardíaco matou o padre Antônio Thomás.  Ele foi enterrado como pediu: "Quero ainda que o meu corpo seja enterrado sem esquife, e que a pedra da sepultura seja reposta no mesmo plano, ficando debaixo do chão, como atualmente se acha, e que não se ponha em tempo algum sobre ela, data, inscrição ou qualquer sinal exterior que a faça lembrada."
       Desejo, aliás, muito parecido com este do poeta Manuel Bandeira: "Morrer tão completamente/ Que um dia ao lerem o teu nome num papel/ Perguntem: "Quem foi?.../ Morrer mais completamente ainda,/ - Sem deixar sequer esse nome". -  in A morte absoluta.
        O padre sonetista Antônio Thomás está sepultado no chão da matriz da pequenina cidade de Santana, no litoral norte do Ceará,  escutando "o marulhar da vaga buliçosa"... como ele diz no seu soneto Vozes do mar.




      


     
  

    
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 04/07/2007
Reeditado em 06/09/2013
Código do texto: T552201
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