Memória da Infância
 
Luiz Carlos Pais
O distante impulso inicial para entender as agitações ocorridas na São Sebastião do Paraíso de minha infância começou a se formar na minha visão de menino de apenas nove anos de idade. Uma razão para esse despertar precoce de minha consciência se deve ao fato de ter presenciado a prisão do meu pai, no dia 9 de abri de 1964, junto com outro funcionário que também trabalhava em nossa sapataria. Portanto, a origem dessa motivação sempre esteve muito presente no despertar de minha consciência política e educacional. Na realidade, reconheço com a sinceridade, tratar-se de um retorno guiado também por motivos emocionais que podem até, em certos momentos da narrativa, se sobreporem ao caráter mais objetivo com que os fatos históricos merecem ser tratados. Por esse motivo, posterguei por muito tempo o projeto de finalizar a redação deste texto, pois estava ainda dividido por uma aparente ambivalência entre restrições subjetivas e compromisso com a objetividade.

Porém, no transcorrer das cinco décadas que se passaram vivenciei uma constante busca de maior serenidade para que pudesse quase transcender qualquer sentimento negativo em relação às cenas que testemunhei quer seja no dia da prisão do meu pai, nos momentos que ele respondeu ao inquérito policial militar, bem como quando os militares vasculharam a intimidade da casa de minha infância, sob a indignação silenciosa de minha mãe, de minha tia e de meus seis irmãos e irmãs, todos menores de treze anos. Nada foi encontrado para incriminar o meu pai. Mas, seria faltar com a verdade histórica subestimar a importância dessa experiência vivenciada na infância, cujos detalhes nem sempre são fáceis de explicitar objetivamente.

Foi preciso então esperar passar o tempo. Tive a oportunidade de tornar-me professor universitário, sempre procurando balizar minha carreira entre os caminhos da objetividade das ciências exatas e da visão humanista com que a educação se faz necessária. Comecei a entender o quanto é importante reconhecer as oportunidades que a vida nos proporciona para superar crises de um momento isolado e reinvestir forças em busca de um sentido maior da nossa existência. Assim, consegui mergulhar no tempo de minha infância para rememorar e contar, pelo menos, minha versão dessa história ocorrida em São Sebastião do Paraíso de 1964. Estava na terceira série primária no Grupo Escolar Interventor Noraldino Lima. O Carlos Rodrigues, filho da conhecida enfermeira Beatriz Fideles Rodrigues e do bancário Osório Rodrigues, era meu colega de classe. Seu pai, mais conhecido como Ozorinho, também foi incluído na lista dos detidos juntamente com o meu pai e mais os outros treze paraisenses.

Lembro-me que no dia seguinte à prisão, mesmo com o estado emocional abalado, minha mãe orientou-me, sabiamente, a não deixar de ir à escola, juntamente com minhas duas irmãs mais velhas, pois não tínhamos motivo algum para temer o ocorrido, mesmo diante da incerteza do que poderia ainda acontecer. As aulas do Grupo Escolar ocorriam pela manhã e no período da tarde eu trabalhava na sapataria, que permaneceu fechada nos dias em que ele esteve detido em Belo Horizonte.

Comecei a aprender a profissão com oito anos de idade, pois naquela época era relativamente comum criança trabalhar para auxiliar os pais. Durante dez anos, exerci o ofício artesanal de concertar calçados e por esse motivo vivenciei todo esse tempo o contato com vários amigos e companheiros de ideologia do meu pai que frequentavam a sapataria. Entre conversas políticas, se falava também de poemas e sonetos, com a participação do João Eduardo de Vasconcelos que também era poeta e literato. Esse clima de interesse por questões humanas e sociais exerceu influência na minha posterior decisão em ser professor. Ainda lembro-me, com clareza de detalhes, muitos momentos que vivenciei nessa fase de minha vida, como o dia da prisão.

Por volta das 17 horas e 30 minutos, do dia 9 de abril de 1964, um jipe da polícia militar, com capota de lona, parou em frente à nossa sapataria, mas permaneceu do outro lado da rua, em frente à Padaria Central. Dentro do veículo estavam dois militares fardados e um conhecido servidor civil, que fazia serviços gerais para a política militar, função esta denominada naquela época de bate-pau. Um dos policiais era o motorista do jipe e o outro estava sentado na parte traseira da viatura, empunhando uma arma de cano longo.

O motorista gritou ao padeiro, como se estivesse interessado em comprar alguma coisa. Tempo para verificar, visualmente, se o sapateiro poeta estava realmente no local de trabalho. Em seguida o veículo foi embora e retornou, minutos depois, para efetuar a sua prisão. Naquela hora avançada do dia, quase todos os outros paraisenses detidos já estavam recolhidos na antiga delegacia que se localizava a Rua dos Antunes, esquina com a Rua Tenente José Joaquim, próximo ao centro da cidade.

Na esquina mais próxima havia formado um aglomerado de pessoas e familiares que queriam saber o que estava acontecendo, mas os policiais impediam qualquer aproximação. Em frente ao prédio da delegacia estava estacionado um velho ônibus que conduziu o grupo paraisense a Belo Horizonte, na noite do mesmo dia. Foi possível fazer o registro desses detalhes e de vários outros depois de certo tempo, quando a memória familiar e coletiva começou a recolher os fragmentos para construir o sentido maior da experiência.


Devido a esses vínculos emocionais foi preciso esperar passar meio século para afastar, o quanto foi possível, das imponderáveis razões existenciais para escrever estas anotações. Pouco a pouco, minha consciência pode entender que todo esforço deve ser feito para não recair no equívoco de julgar as posições envolvidas em um fato pontual. Pelo contrário, toda reflexão dessa natureza permite articular os desafios do presente com o que o passado pode nos balizar o futuro pretendido. Por esse motivo, este texto foi redigido sem a pretensão de postular verdades, como fazem os historiadores. Afinal, acredito na possibilidade de fazer uma leitura de natureza mais educacional e reflexiva desse retorno ao passado de minha saudosa terra natal.

Essa reflexão está acompanhada pela intenção de agradecer os paraisenses que, acima de qualquer diferença política, foram generosos em prestar a solidariedade aos conterrâneos detidos. Nos dias que passaram na prisão, essas pessoas não mediram esforços para fazer o possível no sentido de amenizar o peso dos momentos mais incertos. Desse modo, acredito que podemos perceber melhor a grandeza de muitas pessoas cujos ideais e valores transcendem diferenças pontuais. Para entender melhor as raízes mais distantes desses eventos, quer seja no cenário local e também no panorama político mais amplo do país, é preciso retornar ao início da década de 1930, quando surgem os primeiros movimentos mais expressivos de organização dos trabalhadores e sindicalistas. Por esse motivo, os próximos capítulos buscam o substrato não visível do clima de efervescência de 1964.

Campo Grande, MS, 24 de Janeiro de 2016
Obs. Este texto é um capítulo do livro do autor  "HIstória Recente de São Sebastião do Paraíso (1933 - 1964)"