Lembranças da Minha Infância

Como um quase cinquentão pertenço a uma das últimas gerações em que se usava a criatividade e não a eletricidade, seja em corrente contínua, seja em alternada, para se divertir. Os brinquedos todos eram movidos a mãos, pés, braços e pernas, muitas vezes barbante, linha ou arame, fricção ou corda, mas acima de tudo, eram movidos pela criatividade.

Numa tarde dessas, passando à beira de uma favela e vendo garotos pobres brincarem com um velho brinquedo que se consitui de um arame longo com uma dobra especial na ponta que serve para conduzir um pequeno pneu de borracha - aqueles que se usavam nos carrinhos de feira das nossas mães, coisa que quase já não se usa hoje em dia - abriu-se uma gaveta do arquivo das minhas lembranças há muito trancada em minha mente e comecei a recordar as brincadeiras que nós fazíamos naquele tempo.

Inicialmente me lembrei dos doloridos mas ao mesmo tempo deliciosos tombos de bicicleta que levei, todas emprestadas de amigos, pois meu pai me considerava muito “maluco” para ter a minha própria e, deste modo, eu usava, caia e quebrava a dos coleginhas de bairro mesmo. Era impressionante como todos compartilhavam seus brinquedos naquela época; mesmo quando ainda estavam novos existia um prazer especial em compartilhar-se a alegria de um brinquedo novo com os amigos.

Lembrei-me também de muitos desses “amiguinhos” que foram muito importantes na minha infância, hoje todos senhores, muitos até já são avôs. Nossa relação transcendia a amizade e tornava-se quase uma fraternidade, éramos como irmãos mesmo! Quem viveu nesta época sabe muito bem disso!

Nossos brinquedos eram muito escassos e muitas vezes passados do irmão, ou primo, ou vizinho mais velho para o mais novo e como não eram fabricados na China, duravam muitos anos e não algumas horas como os de hoje. Eram brinquedos normalmente de metal, pintados a mão, alguns importados dos Estados Unidos e Alemanha uma vez que naquela época as fábricas de brinquedos estavam se instalando e começando a produzir brinquedos que parecessem brinquedos e não aberrações amorfas como os primeiros carrinhos e caminhõezinhos produzidos industrialmente no Brasil.

As meninas então eram obrigadas a brincar com uns verdadeiros monstrengos feitos de plástico rígido, sucessoras daquelas bonecas feitas de cerâmica e porcelana, que se quebravam ao caírem ao chão, todas importadas, é claro!

(Não é de se espantar que muitas mulheres de hoje e que eram meninas naquela época, não tenham cultivado o dom da maternidade, aprender a cuidar de um filho com uma boneca daquelas não era fácil não! )

Outra lembrança muito viva relaciona-se aos infindáveis convites que nós, os “machinhos” da espécie, recebíamos o dia inteiro para brincar de médicos e cuidar de suas monstrinhas; fugíamos delas como o diabo foge da cruz; mal sabíamos que uns poucos anos depois nós é que iríamos querer brincar de médicos, mas para cuidarmos das mamães das bonequinhas e não das bonequinhas, mas isso é assunto para uma outra história!

A vida era muito boa naquela época. Lembro-me que todos os anos por volta do mês de Julho a Cooperativa de Consumo da Lapa fazia seu Salão de Brinquedos de Natal e permitiam que crianças filhas de operários, lojistas, bancários e outras profissionais liberais lapeanos, tivessem os seus sonhos de Natal realizados em suaves prestações.

Era um dia de festa, a família toda ia até lá e havia um amplo salão com uma amostra de cada brinquedo disponível para os cooperativados comprarem, aí nós escolhíamos os presentes que iríamos pedir para o Bom Velhinho, nossos pais faziam as encomendas e começavam a pagar as prestações. A Cooperativa se encarregava de negociar com os fornecedores as condições de compra e a data de entrega dos brinquedos e, impecavel e pontualmente, o Papai Noel trazia os brinquedos de acordo com a encomenda. Às vezes ele errava a cor, mas isso nunca foi um problema muito sério!

Lembro-me do jipe de lata, do patinete, do Autorama “Looping”, do Banco Imobiliário e de tantos outros brinquedos que chegavam na noite de Natal, depois da décima segunda badalada do relógio carrilhão da Dna. Clara, nossa vizinha da casa 3, que quando badalava fazia tremer o quarteirão. Realmente era um tempo mágico, de muitos sonhos, poucos brinquedos, mas de grande alegria. Eram mágicos aqueles brinquedos que ganhávamos na noite de Natal.

Raramente alguém ganhava algum brinquedo no Dia das Crianças ou mesmo no Dia do Aniversário. Ainda hoje me lembro das pilhas e pilhas de cuequinhas, meias, camisetas e toda sorte dessas roupas inúteis que eu ganhava nestas outras datas. Eu chegava a detestar as festas de aniversário só por causa dos presentes! Não era como nas festas de hoje em que as crianças ganham todos os novos brinquedos em todas as datas comemorativas e acabam abandonando-os nas prateleiras dos armários; nós “b r i n c á v a m o s” de verdade com eles.

Sinto muito hoje ao ver as crianças ganhando brinquedos quase todos os dias; brinquedos baratos, descartáveis, feitos muitas vezes de materiais tóxicos e inadequados para o manuseio de uma criança, mas tudo em nome da sociedade de consumo, em nome do “quanto mais melhor”!

Sinto saudade da minha infância quando por um ano inteiro construíamos um sonho de Natal e da alegria que sentíamos quando ele se realizava. Lembro-me do cuidado que tínhamos com o bem recebido e a felicidade ao acordar logo cedo todas as manhãs por vários meses, só para reiniciarmos nossa brincadeira interrompida pelo sono da noite anterior e fico pensando: o que será das novas gerações cujos sonhos nascem pela manhã, realizam-se à tarde e são esquecidos ao anoitecer?

Belmiro Barrella Jr
Enviado por Belmiro Barrella Jr em 04/07/2007
Reeditado em 05/07/2007
Código do texto: T552176