Revisão da História de Paraíso (1964)
 
Luiz Carlos Pais

As cinco décadas que se passaram desde o golpe militar de 1964 estão permitindo o aparecimento lento e gradual de alguns registros da história, mas ainda não é possível visualizar tudo com clareza. Eventos regionais e nacionais começam a ser tratados na nebulosa interface da história, da memória e do jornalismo investigativo. Apesar das dificuldades em fazer esse tipo de registro textual para recompor o passado recente, penso que todo esforço nesse sentido merece ser reconhecido. Trata-se de uma tarefa desafiadora para escrever a história e que somente poderá resultar de um amplo esforço coletivo, admitindo o saudável espaço para as visões diferentes que possam surgir.

Sejam artigos publicados na imprensa local, memórias pessoais registradas em textos, trabalhos de pesquisa histórica ou publicações de abrangência mais ampla.

Para registrar as fontes bibliográficas que começam a desvelar a história recente da nossa cidade considero oportuno registrar a pesquisa feita pelo professor de história Renato José Paschoini, que resultou na monografia intitulada Presos Políticos de São Sebastião do Paraíso em 1964, trabalho acadêmico defendido em 2009. A importância de cada trabalho elaborado com esse propósito de pesquisa pertence ao campo mais balizado de atuação dos historiadores profissionais.

Além desse tipo de referência de grande importância, parte da memória local ainda resiste para contar nuances menos visíveis das subjetividades envolvidas na história.

Outra publicação recente que revela fragmentos até então não registrados na formalidade de um texto para compor a história vivenciada pelos paraisenses, no contexto de 1964, é o livro do jornalista Leonêncio Nossa, intitulado Mata! Major Curió e as Guerrilhas do Araguaia. O autor esteve em Paraíso para recompor a trajetória protagonizada pelo militar que comandou a operação de detenção de seus conterrâneos. O tenente teria recebido ordens do general Guedes, um dos dois líderes do golpe, para investigar nossos conterrâneos acusados de rebeldia política e social.

Consta no livro mencionado que o general tinha em mãos, nos dias que sucederam ao golpe, uma lista com os nomes dos paraisenses, coletivamente, chamados de “Grupo de Paraíso”, os quais deveriam ser investigados por uma aparente razão de grande relevância, na visão do militar. Nenhuma outra referência que tenho conhecimento, até hoje, esclarece a procedência desta suposta lista que estaria em mãos do general. Muito menos está esclarecida como teria essa suposta lista chegado à mesa dos militares insurgentes.

Existiam muitas outras denúncias oriundas de outras cidades do interior de Minas, mas o chamado “Grupo de Paraíso” recebeu uma atenção especial dos líderes militares por algum motivo. Penso não ser nenhum exagero relacionar a gravidade dessa possível denúncia, com outra ocorrida no final de 1962, para a qual há documentos hoje pubicamente disponibilizados, quando o DOPS enviou agente à cidade para investigar denúncia de uma suposta entrada ilegal de explosivos na região de São Sebastião do Paraíso. Pesquisei esse caso e convido ao leitor a fazer sua própria leitura no relatório incluso no capítulo 10 deste livro.
Diante da possível denúncia feita contra esse denominado “Grupo de Paraíso”, o tenente paraisense teria sido então encarregado de investigar o caso dos conterrâneos que poderiam estar envolvidos em supostos atos de subversão política e social. A lista dos detidos teria sido finalizada na própria cidade em uma reunião da qual teriam participado o padre e outras doze personalidades locais.

Alguns paraisenses detidos tinham seus nomes registrados nos arquivos do DOPS pelo fato de terem participado da instalação do comitê local do partido comunista, organizado nos idos de 1946. Na euforia do pós-guerra, duas dezenas de jovens idealistas optaram por formalizar uma nova legenda partidária até então inexistente na cidade. Entre os pioneiros dessa orientação partidária estavam Carlos Gaspar e José Paes, que exerceu a função de secretário da referida organização de esquerda.

Pelo mesmo motivo, meu pai já havia sido preso em 1951, juntamente com o fotógrafo José Diniz. Os dois foram acusados de participar de um protesto contra a carestia do custo de vida. Quanto a esse episódio, consta no processo que os dois militantes, entre outros, estariam participando de um movimento em favor da paz mundial. Este movimento tratava-se de uma bandeira defendida naquela época, cuja motivação estava associada à Guerra da Coreia e às pressões exercidas pelos Estados Unidos para que o Brasil entrasse no conflito. Os detalhes deste caso e os registros que pude resgatar são descritos no capítulo oito deste livro.

Para relacionar os eventos locais e nacionais ocorridos em 1964, quando o presidente Goulart foi deposto pelos militares, é preciso então retornar ao contexto do pós-guerra. Mas com a decretação da ilegalidade da legenda, o núcleo comunista de São Sebastião do Paraíso havia encerrado há tempos as suas atividades.
Entre os paraisenses detidos havia militantes do Partido Trabalhista Brasileiro, legenda pela qual o presidente deposto havia sido eleito. Este era o caso do barbeiro Geraldo Borges Campos (Peba) que, por duas vezes foi candidato a prefeito. José Paes e o Peba foram detidos duas vezes. Mas, as consequências para o líder trabalhista foram muito mais dolorosas. Ele passou três anos na prisão e veio a falecer, dias depois de ser liberado da prisão com estado de saúde debilitado, em 1967. Esta foi a mais triste das consequências vivenciadas pelos paraisenses envolvidos no contexto histórico de 1964. O caso do barbeiro e líder trabalhista chegou ao Supremo Tribunal Militar que, por unanimidade de votos, o absolveu de todas as acusações impostas anteriormente.

Mas nem todos os paraisenses detidos no contexto do golpe de militar de 1964 eram trabalhistas ou comunistas. Alguns apenas expressavam simpatia pelas ideias reformistas difundidas nos eufóricos discursos do governador Leonel Brizola. Motivo este suficiente, no contexto agitado da época, para terem seus nomes incluídos na lista de cidadãos suspeitos. Ao abordar o tema hoje, quando grande parte do país anseia por maturidade política e consciência social, é preciso observar que as diferenças ideológicas estavam excessivamente acirradas naquele momento. Assim, é preciso reforçar ao leitor disposto a fazer esse retorno ao nosso passado que estas anotações expressam apenas uma visão pessoal dos fatos e, por esse motivo, não devem ser vistas como se fosse uma suposta verdade histórica.

Por outro lado, ao escrever este texto, tentei amenizar, tão quanto foi possível, o peso de minha proximidade com fatos descritos. Não somente por abordar os ideais políticos do meu pai, mas também por ter convivido com seus companheiros de prisão. Procurei fazer isso com a inserção de informações retiradas da memória e de vários documentos coletados ao longo dos anos, quase todos hoje disponíveis em arquivos públicos do país. Alguns dos documentos que considerei de maior importância foram inseridos no texto com as devidas referências. Com isso, penso que o leitor poderá fazer leituras, eventualmente, diferentes daquela que possa predominar na minha maneira de registrar os eventos.

Campo Grande, MS, 24 de Janeiro de 2016