Frente Negra Brasileira
 
Luiz Carlos Pais
 
O acervo do extinto Departamento de Ordem Política e Social de Minas Gerais guarda 32 documentos, datados de 1931 a 1936, que reconstituem parte da história política e social de São Sebastião do Paraíso. Alguns deles, inseridos na pasta 4979, revelam a trajetória de resistência da principal instituição criada por descendentes de escravos no país, a Frente Negra Brasileira (FNB), que no início da década de 1930 mantinha um núcleo organizado na cidade; vinculado à coordenação regional de Guaxupé. Este artigo registra essa história e rende homenagem aos líderes negros do passado, que auxiliaram, com força física e espiritual, na construção da cidade dos nossos dias.

Esse episódio está inserido num contexto mundial marcado por extrema incerteza política e dificuldades econômicas. Alguns anos depois teria início a Segunda Guerra Mundial. Foram também os momentos mais autoritários do governo Vargas. Os referidos documentos tratam de temas como: fechamento da Loja Maçônica, criação de uma Federação Sindical, dificuldades enfrentadas por imigrantes italianos e pelos descendentes dos povos africanos. Entretanto, essa crônica trata apenas do que diz respeito à citada organização de defesa dos direitos da comunidade negra. Sua presença em Paraíso, por certo, contribuiu para a composição de uma história de abrangência muita mais ampla do que os limites geográficos do sudoeste mineiro.

A FNB foi criada, em 1931, por líderes empenhados em defender os direitos sociais dos milhões de brasileiros descendentes dos escravos. Em decorrência da política do governo Vargas, na fase do Estado Novo, a organização foi obrigada a encerrar suas atividades, em 1937. Mas, a semente plantada deu origem a outros grupos, que passaram a funcionar como clubes sociais, desportivos ou religiosos. Historiadores do tema reconhecem, hoje, que a FNB foi a mais importante organização negra cuja existência ganhou visibilidade política na fase final da Velha República. Suas lideranças tinham uma visão crítica da falta de políticas públicas para atender as dificuldades sociais decorrentes dos longos anos de escravidão.

Uma das bandeiras defendidas pela organização era garantir o direito de acesso da população negra à educação como estratégia de inserção social e superação do preconceito ainda existente na sociedade brasileira. Assim que foi fundada na capital paulista, foram instalados núcleos na Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, totalizando cerca de 200 mil associados. Sempre foi uma instituição pacifista, formada por cidadãos honrados e trabalhadores, mas teve a prudência de organizar seus pelotões de guardas, mantidos com rígida disciplina e ordem, para defender a comunidade dos constantes abusos e agressões por partes daqueles que ainda tinham a cabeça no tempo da escravidão.

O florescente progresso conquistado nos primeiros anos de funcionamento fez com que a organização se transformasse, em 1934, no primeiro e único partido político de negros na história eleitoral do país. Teve suas atividades encerradas por força da legislação do Estado Novo, e mesmo mudando para organizações recreativas foram duramente perseguidas. Em Minas Gerais, há registro de organização de núcleos em 20 cidades, dos quais, um dos mais importantes foi o de Guaxupé, onde funcionou o comandando estadual sob a liderança de Pio Damião, falecido em 1945.
Voltando algumas décadas no tempo considerado, a população escrava no recém criado município de São Sebastião do Paraíso era de cerca de dois mil e quinhentos indivíduos adultos, considerando a prática de alguns senhores que ignoravam os seus laços familiares, separando-os em função de seus interesses econômicos. Contrário a esse abuso de separação de família, militou o Cônego Thomaz de Affonseca e Silva, que defendeu na imprensa nacional o sagrado direito ao matrimônio religioso dos escravos e alertando que nenhum patrão tinha o direito de separar a união conjugal de escravos. Apesar dessas dificuldades, muitas famílias negras conseguiram manter-se unidas, entre as quais a de Margarida de Jesus (1842 – 1922), uma das escravas do pároco Joaquim Ferreira Teles, falecido em 28 de julho de 1884.

Entre os documentos analisados consta um ofício assinado pelo delegado de São Sebastião do Paraíso, de 8 de outubro de 1936, endereçado ao chefe da polícia da capital, tratando de questões relativas ao núcleo local da FNB. O delegado pediu orientações de como ele deveria “conduzir o caso” da filial instalada na cidade. O delegado refere-se à instituição como uma sociedade político-recreativa vinculada à sede regional de Guaxupé. O policial tinha verificado os documentos e a mesma estava devidamente registrada no cartório do 2º tabelião da cidade.

Em documento de 30 de dezembro de 1936 consta que a entidade estava isenta de outros registros legais, de acordo com um parecer jurídico manuscrito anexo ao processo, elaborada pelo advogado Joaquim Ferreira Gonçalves, que, anos depois, ocuparia o honroso cargo de Secretário de Segurança Pública do Estado de Minas. Desse modo, o ilustre advogado paraisense, a pedido dos líderes locais da FNB, confirmou a legalidade de funcionamento da instituição. O advogado esclareceu às autoridades locais que o núcleo paraisense da FNB estava devidamente registrado em cartório como instituição social e vinculado à sede regional, que, por sua vez, estava registrada nos órgãos de fiscalização do país. Portanto, nenhuma ilegalidade havia na luta de resistência da comunidade negra de São Sebastião do Paraíso.

Campo  Grande, MS, 24 de Janeiro de 2016
Crônica publicada no Jornal do Sudoeste, de São Sebastião do Pararaíso, em edição de 23 de Janeiro de 2016.