O doce engano da borboleta
Ela veio, em plena tarde de estio, ocupar meus olhos de contemplação. E veio atraída pelo frescor líquido das águas, pelo cinzento nostálgico da tarde, pelas nuances do verde e pelas formas das plantas, ainda molhadas, do pequeno jardim interno da casa que habitamos.
A pequena borboleta veio. Chegou sem pressa de dizer que veio, e sem dizer a que veio, encheu a tarde inteira com a graciosidade de seus gestos alados, com o colorido de suas asas finas, adejantes ao farto vento da chuva que findara. A “samambaia chorona”, o “dinheiro em pencas”, o “comigo ninguém pode”, ainda exibiam indiferentes, os sinais das águas que lhes banhara, havia pouco tempo.
De dentro da sala, de dentro de mim, assisto ao espetáculo que a pequena borboleta, de asas muito negras, com listras amarelas, vai descrevendo, na repetida tentativa de encontrar o néctar, de recolhê-lo para com ele ir polinizar as flores, operando o milagre da renovação. Primeiro voa lento, de forma estratégica, entre as plantas que descem do pergolado de madeira, para quase atingir o chão. Esgueira-se entre elas, voando ligeiro, como um guerreiro a reconhecer, a estudar o terreno em que travará seu mais definitivo combate.
Parece inibida ou insegura, quanto ao seu destino de ser borboleta, entre as plantas que reinam no jardim. Reconhece a todas, com suas longas antenas e continua circundando cada uma, mais de uma vez, como a protegê-las de novos visitantes ou a proteger-se, ela mesma, de qualquer agressor. De quando em vez, estanca o espetáculo que me oferece, para pousar em frente à flor, buscando o mel de seus pólens doces, para o milagre da fecundação. Afinal de contas, nesse explícito gesto, está escrito o seu mais marcante destino existencial, dentro da ordem viva do universo que Deus criou, para mover-se no sentido da eternidade.
Assim ela fica, diante de mim, diante da tarde, entre o verde das plantas do jardim e as gotas d’água que, trêmulas, reluzem e se equilibram nas folhas, escorrendo, para depois mergulharem na terra. Mas a pequena borboleta parece inquieta, insatisfeita talvez com seu trabalho, com sua árdua tarefa de ir e vir, em torno das mesmas plantas, das mesmas flores, sem contudo extrair o néctar que tanto precisa para seu próprio alimento, para fecundar as flores que ainda deve visitar, na tarde úmida. Talvez a primeira tarde de sua existência alada. Quem pode responder?
A fase de crisálida, quando foi uma lagarta vagarosa, lerda mesmo, não tem a menor graça agora, comparada com o privilégio de voar, de ser mais plasticamente bela, de ser alvo de admiração, de poder encantar meus olhos com o trajeto de seu vôo, tão casual e rítmico, nos braços invisíveis do vento.
Fico atento aos volteios, às tentativas que ela vai fazendo em torno das flores, das folhas verdes, como se quisesse compreender bem o que se passa com aquelas flores, que têm forma de flor, que têm cores de flor, mas não têm cheiro. O que se passaria com aquele jardim, que não tem o odor doce do pólen, das pétalas, e não sabe ser generoso ao devolver o afago que recebe?
Pergunto-me, de forma quase pueril: – Que coisas estaria “pensando” a pequena borboleta, presa na armadilha real daquelas plantas frias, secas, mudas, que não sabem receber carícias, que não sabem devolver ternuras? Mas a pequena borboleta não parece disposta a desistir. Pousa, “pensa”, descansa e vem, voando paciente, para tentar outra vez, sem sucesso.
O jardim, no entanto, permanece impassível, como as plantas, que o compõem, apesar de sacudidas ao vento. Ele é apenas um belo cenário ornamental, com todas as plantas, tão semelhantes às plantas naturais, mas sem vida vegetal. O jardim interno é uma bela composição de arranjos florais, feitos de plásticos. Mas, com uma fidelidade incrivelmente real. Tão real, ao ponto de enganar a mais ágil, alegre e experiente borboleta, acoitado pelo clima úmido da tarde cinzenta.
Enquanto a pequena borboleta faz volteios, na inútil e vã tentativa de alimentar-se ali, fico pensando como é bela e rica a natureza, na imanência que direciona a todos nós, nos levando a cumprir um destino instintivo, na perpetuação de nossas espécies, na comunhão de uma ordem cósmica, da qual somos partículas unitárias, sob a luz dessa energia difusa e perene que é Deus.
Fico pensando, ainda, que o relacionamento humano, com toda a riqueza de sua dimensão pessoal, contém a lição clara que o episódio da pequena borboleta nos impele a refletir. Há pessoas que são exatamente como a pequena borboleta da tarde. Cumprem seu destino de vida, na busca de alimentos materiais, espirituais, intelectuais, de valores éticos que possam ser repartidos com os outros; que possam mesmo dar vida aos outros, enriquecendo a dignidade da espécie humana, numa tentativa de construção de um mundo e de uma vida melhor. Elas estão além da vida terrena e são pontos de difusão da fé, da esperança e cultivam as virtudes da alma, como motivação maior de viver. Incansáveis nas tarefas e responsabilidades a que se impõem, elas se revigoram com as dificuldades, lutando para transformá-las, em proveito dos outros.
Há pessoas, no entanto, que são como as flores do pequeno jardim. Estão, por natureza, presas a um viver e egocêntrico que conduz a um mundo de isolamento, um mundo de aridez espiritual, a um mundo desprovido de perspectiva de transcendência, na dimensão humana. Elas não conseguem ouvir ou, se ouvem, não sabem responder, de forma positiva a estímulos positivos. Elas estão imersas num pequeno mundo de rancores, de ódios, de destruição; um mundo de sombras, onde não entram os fachos luminosos da esperança, da paz, da fraternidade, do amor.
Fico fazendo essas ilações, cotejando a dimensão humana, num mundo em que somos, todos, energia, decorrentes da mesma fonte de luz, enquanto a pequena borboleta voa vagarosa, pousa, e volta uma vez mais, para cortejar as flores mudas, secas, áridas de fertilidade, no meio da tarde de estio. E me deixo ficar, sentindo o doce engano da borboleta.
Quantas vezes, também, não nos enganamos com as aparências, as almas de pessoas que são reais, mas parecem não ter vida. Amar a vida é fazer ilações observando outros seres vivos.
A pequena borboleta veio. Chegou sem pressa de dizer que veio, e sem dizer a que veio, encheu a tarde inteira com a graciosidade de seus gestos alados, com o colorido de suas asas finas, adejantes ao farto vento da chuva que findara. A “samambaia chorona”, o “dinheiro em pencas”, o “comigo ninguém pode”, ainda exibiam indiferentes, os sinais das águas que lhes banhara, havia pouco tempo.
De dentro da sala, de dentro de mim, assisto ao espetáculo que a pequena borboleta, de asas muito negras, com listras amarelas, vai descrevendo, na repetida tentativa de encontrar o néctar, de recolhê-lo para com ele ir polinizar as flores, operando o milagre da renovação. Primeiro voa lento, de forma estratégica, entre as plantas que descem do pergolado de madeira, para quase atingir o chão. Esgueira-se entre elas, voando ligeiro, como um guerreiro a reconhecer, a estudar o terreno em que travará seu mais definitivo combate.
Parece inibida ou insegura, quanto ao seu destino de ser borboleta, entre as plantas que reinam no jardim. Reconhece a todas, com suas longas antenas e continua circundando cada uma, mais de uma vez, como a protegê-las de novos visitantes ou a proteger-se, ela mesma, de qualquer agressor. De quando em vez, estanca o espetáculo que me oferece, para pousar em frente à flor, buscando o mel de seus pólens doces, para o milagre da fecundação. Afinal de contas, nesse explícito gesto, está escrito o seu mais marcante destino existencial, dentro da ordem viva do universo que Deus criou, para mover-se no sentido da eternidade.
Assim ela fica, diante de mim, diante da tarde, entre o verde das plantas do jardim e as gotas d’água que, trêmulas, reluzem e se equilibram nas folhas, escorrendo, para depois mergulharem na terra. Mas a pequena borboleta parece inquieta, insatisfeita talvez com seu trabalho, com sua árdua tarefa de ir e vir, em torno das mesmas plantas, das mesmas flores, sem contudo extrair o néctar que tanto precisa para seu próprio alimento, para fecundar as flores que ainda deve visitar, na tarde úmida. Talvez a primeira tarde de sua existência alada. Quem pode responder?
A fase de crisálida, quando foi uma lagarta vagarosa, lerda mesmo, não tem a menor graça agora, comparada com o privilégio de voar, de ser mais plasticamente bela, de ser alvo de admiração, de poder encantar meus olhos com o trajeto de seu vôo, tão casual e rítmico, nos braços invisíveis do vento.
Fico atento aos volteios, às tentativas que ela vai fazendo em torno das flores, das folhas verdes, como se quisesse compreender bem o que se passa com aquelas flores, que têm forma de flor, que têm cores de flor, mas não têm cheiro. O que se passaria com aquele jardim, que não tem o odor doce do pólen, das pétalas, e não sabe ser generoso ao devolver o afago que recebe?
Pergunto-me, de forma quase pueril: – Que coisas estaria “pensando” a pequena borboleta, presa na armadilha real daquelas plantas frias, secas, mudas, que não sabem receber carícias, que não sabem devolver ternuras? Mas a pequena borboleta não parece disposta a desistir. Pousa, “pensa”, descansa e vem, voando paciente, para tentar outra vez, sem sucesso.
O jardim, no entanto, permanece impassível, como as plantas, que o compõem, apesar de sacudidas ao vento. Ele é apenas um belo cenário ornamental, com todas as plantas, tão semelhantes às plantas naturais, mas sem vida vegetal. O jardim interno é uma bela composição de arranjos florais, feitos de plásticos. Mas, com uma fidelidade incrivelmente real. Tão real, ao ponto de enganar a mais ágil, alegre e experiente borboleta, acoitado pelo clima úmido da tarde cinzenta.
Enquanto a pequena borboleta faz volteios, na inútil e vã tentativa de alimentar-se ali, fico pensando como é bela e rica a natureza, na imanência que direciona a todos nós, nos levando a cumprir um destino instintivo, na perpetuação de nossas espécies, na comunhão de uma ordem cósmica, da qual somos partículas unitárias, sob a luz dessa energia difusa e perene que é Deus.
Fico pensando, ainda, que o relacionamento humano, com toda a riqueza de sua dimensão pessoal, contém a lição clara que o episódio da pequena borboleta nos impele a refletir. Há pessoas que são exatamente como a pequena borboleta da tarde. Cumprem seu destino de vida, na busca de alimentos materiais, espirituais, intelectuais, de valores éticos que possam ser repartidos com os outros; que possam mesmo dar vida aos outros, enriquecendo a dignidade da espécie humana, numa tentativa de construção de um mundo e de uma vida melhor. Elas estão além da vida terrena e são pontos de difusão da fé, da esperança e cultivam as virtudes da alma, como motivação maior de viver. Incansáveis nas tarefas e responsabilidades a que se impõem, elas se revigoram com as dificuldades, lutando para transformá-las, em proveito dos outros.
Há pessoas, no entanto, que são como as flores do pequeno jardim. Estão, por natureza, presas a um viver e egocêntrico que conduz a um mundo de isolamento, um mundo de aridez espiritual, a um mundo desprovido de perspectiva de transcendência, na dimensão humana. Elas não conseguem ouvir ou, se ouvem, não sabem responder, de forma positiva a estímulos positivos. Elas estão imersas num pequeno mundo de rancores, de ódios, de destruição; um mundo de sombras, onde não entram os fachos luminosos da esperança, da paz, da fraternidade, do amor.
Fico fazendo essas ilações, cotejando a dimensão humana, num mundo em que somos, todos, energia, decorrentes da mesma fonte de luz, enquanto a pequena borboleta voa vagarosa, pousa, e volta uma vez mais, para cortejar as flores mudas, secas, áridas de fertilidade, no meio da tarde de estio. E me deixo ficar, sentindo o doce engano da borboleta.
Quantas vezes, também, não nos enganamos com as aparências, as almas de pessoas que são reais, mas parecem não ter vida. Amar a vida é fazer ilações observando outros seres vivos.