Soltando barquinhos de papel

 
 
Era sempre depois da chuva, quando cessavam os trovões, quando minguava a bica do quintal, quando as águas que desciam da Praça Deodoro deixavam de ser enxurradas e vinham escorrendo, lentamente, pela tarde cinzenta. Era quando nós, ainda molhados de banhar na chuva, nos púnhamos a construir, com nossas mãos de esperanças, os barquinhos de papel que soltávamos, na porta de casa, na Rua de Santaninha e que iam, além de nossas esperanças, descendo a Rua da Paz, a de Santa Rita, a do Pespontão, até mergulhar na “Boca-de-lobo”, na Rua do Alecrim.
Cadernos escolares, já usados, serviam para construção de nossa frota lúdica. Um após outro, íamos construindo-os, na medida de nossa necessidade ocasional. Como barcos, tinham uma boa resistência à água, e a vantagem de que sabíamos encontrar o papel, quando dele precisávamos.
Os mais duráveis, no entanto, eram os que fazíamos de papel pardo, usado para encapar nossos livros e cadernos. Eram mais resistentes à água, e nos permitiam construir barcos maiores, pela textura das folhas. Mas não era fácil dispor desse papel, na hora precisa. Quem costumava guardá-los, para nos servir no momento exato, era meu avô materno, Manoel Furtado, que nunca estava desprevenido para nossos pedidos e nossas queixas.
Os barcos mais frágeis eram os que fazíamos com papel jornal. Logo a água os umedecia e os desmanchava, fazendo-os naufragarem ainda no começo da jornada. Mas nem por isso os desprezávamos. Tínhamos, para com eles, o mesmo grande zelo, o mesmo grande esmero para que fossem belos, e os ajudávamos a seguir seus destinos de papel e esperança.
Sim, porque cada um tinha um destino próprio, determinado pela casualidade, pelos acidentes do percurso, pelo curso das águas que os levavam e, em parcela menor, por nossos desejos de construtores.
No meio da tarde fria, seguiam eles, levando cópias, ditados, exercícios de português, de matemática, tabuadas, avaliações de nossos professores, numa viagem ligeira que acompanhávamos, até onde supúnhamos ser os seus destinos ou seus limites de sobrevida, na luta inglória contra a força das águas, que corriam, para desaguar no mar.
Lá iam eles, muitas vezes, não levando nada além de nossos desejos de que fossem bem longe, fugindo de nossos olhos, levando nossa fantasia e, por ela, encontrassem o mar. Para encontrar o mar, todavia, era preciso alcançar a “Boca-de-lobo”, da Rua do Alecrim. Sabíamos disso por informação dos mais velhos, que nos advertiam sempre, para o nosso risco de cairmos ali, e nunca mais sermos encontrados.
Eu tinha medo. Meus irmãos, meus amigos tinham medo também. Penso mesmo que várias gerações, dos que viveram em torno daquele espaço da cidade, tiveram medo daquela grande grelha, daquele imenso bueiro que ficava ali, recebendo as águas de várias ruas vizinhas, para levá-las ao mar. Era a “Boca-de-lobo” famosa que, até hoje, é presente em nossas lembranças, especialmente, quando a chuva cai torrencial sobre a cidade, e vai retirando o pó com que o tempo cobre de esquecimento os fatos, as pessoas, as coisas que, de algum modo, tiveram vida, em algum tempo, em algum lugar. O poeta e compositor Sérgio Habibe confessou, em uma de suas composições, o seu medo: “-Eu juro que tinha medo/ Eu juro que tinha medo, da “Boca-de-lobo, senhor…” Esse medo, certamente, ainda dorme em suas lembranças.
O mar era o destino que imaginávamos para nossos barquinhos papel. Mas a “Boca-de-lobo era o grande epicentro desse destino, a porta de entrada para o mar; era o próprio mar, talvez, em nossas ilusões infantis; era o abismo, para onde convergiam nossos desejos.
Era bom seguir os barquinhos, vê-los contornarem as ondulações do calçamento, as pedras que serviam de empecilho, as curvas que eram conduzidos a fazer, a velocidade com que se atiravam sarjeta a baixo, na tarefa de cumprirem seus destinos. Quando encalhava algum, esperávamos para que se livrasse sozinho. Mas se não conseguisse, estávamos ali para ajudar, com nossas mãos pequenas, evitando que emborcassem e não servissem mais.
Havia duas maneiras, mais claras e distintas de brincarmos, quando não estávamos sozinhos. A mais comum, era apostar corridas, mesmo sem pagamento de prêmios ao vencedor. Nesse caso, o barco era cada um de nós, transformado em símbolo, com o conteúdo psicológico de nossas emoções, nossa garra, nosso desejo de vencer. O barco então era “eu”, para todos nós. – Eu cheguei primeiro. – Eu encalhei. – Eu perdi. Assim, o nosso empenho, estava mais emocionalmente envolvido, pela força do “eu”, brandida de dentro de nós.
Quando estávamos competindo, não podíamos ajudar no percurso, pois cada interferência podia significar vantagem sobre o concorrente. Tínhamos que acompanhar torcendo, vibrando, como se fossemos nós mesmos e, em verdade, éramos nós mesmos que estávamos ali, feitos de papel, molhados de chuva, iluminando a tarde com nossa felicidade pueril.
Quando não estávamos competindo, os barquinhos podiam ser nós, mas podiam ser muitos, podiam ser eles próprios que é o que mais acontecia. Como eles próprios, era bom ajudá-los a cumprirem suas trajetórias de casualidades, até onde podíamos segui-los.
Como foram úteis os barquinhos de papel. Nos ensinaram a construí-los, nos ensinaram a competir, a vencer os obstáculos, a ir além do visual e do claramente possível, a buscar nossos sonhos e a desaguar no mar. Onde estão? Para onde foram eles? Olho em torno de mim e respondo: em nossos filhos, em nossas lembranças, em nossas conquistas, em nossos sonhos, dentro de nós mesmos, sendo nós mesmos barquinhos de papel, cumprindo nossos destinos, em busca do mar. Em busca do mar, do incerto, do casual, de nossa própria identidade de barquinhos do destino. Amar a cidade é poder cultivar nossos referencias de vida e zelar por nossa identidade. 
Ivan Sarney
Enviado por Ivan Sarney em 24/01/2016
Reeditado em 24/01/2016
Código do texto: T5521045
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.