Um pio de coruja dentro da noite

Ainda há pouco, piou dentro da noite uma coruja. Não pude vê-la, imersa na noite escura, na densa e suave noite que desce sobre a Rua dos Sabiás, e vai envolvendo o Renascença inteiro, para só depois apascentar a cidade, deitando-se pela Ponte do São Francisco, rumo aos sobrados e as ladeiras da Praia Grande.
Não pude vê-la, iluminado pela luz fria do espaço em que me encontro, na paz de minha família e meu lar. Eu, do lado de dentro do apartamento, fora da noite escura, que o vidro denuncia pela luz dos postes, dispersos sobre os telhados e as ladeiras. Não pude vê-la. Apenas a ouvi.
Ela, a coruja, do lado de fora, dentro da noite escura, na penumbra que a luz projeta sobre as calçadas, pelos olhos acesos dos postes, sobre os corpos das pessoas que teimam em caminhar a essa hora da noite.
Mas ouvi seu piado, às 23h35min horas, de quinta-feira, deste janeiro que chega, trazendo as primeiras chuvas da estação, e as lembranças intermináveis das travessuras da infância, com tudo o que isso significou, como experiências essenciais e definitivas de vida.
Em minha infância, quando a coruja piava – urdindo seu lamento, seu voo de pássaro noturno, de ave de mau presságio, sobre os telhados de todos nós – os mais velhos interpretavam como sinal de agouro. E corriam a se benzer, a rezar, pedindo a Deus que afastasse aquele infortúnio. Era um sinal sinistro, na crença cultural que tinham, e nisso envolviam nossos sentimentos também.
Meu avô materno, meu pai, minha mãe, minha tia, que tanto nos ajudaram a ser temente a Deus, nos ensinavam que era sinal de agouro e que alguém morreria ou teria morrido, nas redondezas.
Era um piado terrível, cortante como um fio de navalha. Para nós, com o ensinamento deles, era a “rasga-mortalha” que piava, anunciando a má sorte de alguém. Em verdade, nunca soube de morte alguma ligada a esse presságio sombrio.
Onde estão meus ascendentes, agora? Estão todos encantados definitivamente, na noite profunda da eternidade. Estão no limiar das lembranças, onde podem ser imprecados; onde podem ser ouvidos; donde podem guiar e proteger nossos passos, conduzindo-nos no caminho do bem. Estão em torno de nós, sob a face imutável das lembranças.
O que pode uma coruja, dentro da noite? O que pode uma noite, dentro da alma de um homem, cujo sentimento maior é o de amar?
Estou em paz comigo, com meus amigos, com minha família, com todos os meus semelhantes. Estou, simplesmente, coberto de paz, e tenho que repartir com as pessoas que me circundam um pouco dessa paz e dessa alegria.
Estou a serviço da paz, do futuro, dos jovens, da família, dos idosos, dos recém-nascidos. Integro uma corrente do pensamento, mundial, que está trabalhando pela reconstrução social do homem. É a corrente da qual fazem parte poetas, filósofos, romancistas; aqueles que são os formuladores do mundo contemporâneo e do futuro. Somos milhões e seremos mais, cada vez mais, trabalhando em prol da humanidade.
Há uma febre de mudança social, em todos os segmentos de nossa sociedade. De repente, o coro dos que pediam mudanças foi ouvido e os homens de boa fé deram-se as mãos, para a formação dessa grande ciranda que está produzindo mudanças, em nosso país.
Teremos eleições este ano. Nada foi tão inovador, quanto o voto eletrônico. Nada foi tão democrático, porque permitiu que a expressão da vontade popular fosse de fato espelhada.
Como é bom ver a ordem, a tranquilidade, a paz, reinando entre mesários e fiscais, no dia da eleição; a face de mudança que os jovens mesários estampam, do alto de sua autoridade e juventude, cumprindo uma elevadíssima responsabilidade, no processo eleitoral.
O país emerge de suas contradições, para exibi-las uma vez mais. Mas ostenta a força inigualável da democracia participativa, com os cidadãos nas ruas, nas urnas, no dia da eleição, decidindo o futuro de seu país, de seu estado, de seu município.
Deste lado da noite, como é bom saber que tantas pessoas acreditaram em mim, confiando-me o seu voto, um dia. O que deve ser o voto senão a síntese de um conjunto de esperanças e sonhos, que alimentam a construção de nosso amanhã, a melhoria de nossa qualidade de vida.
Deste lado da noite, sou um homem feliz com sua própria face e com seus passos de cidadãos. Sou um homem a sonhar com o futuro, alongando seus olhos por sobre os horizontes, na esperança de ver drapejar no tempo, a bandeira desfraldada da esperança.
Sou um homem que não teme o pio da rasga-mortalha, ainda que as lições de meu avô, de minha mãe estejam vivas dentro de mim. É que o tempo, ele próprio desvendou os mistérios da infância; apontou os rumos a seguir, pondo-nos a serviço do interesse comum, coletivo por sua mais íntima natureza.
Com a responsabilidade aumentada sobre meus ombros, o que me envolve agora não é o pio da coruja, dentro da noite. Mas sim, o clamor popular; os anseios dos que confiaram em mim; dos que avaliaram o meu trabalho e me deram aprovação.
O pio da rasga-mortalha então, dentro da noite escura, é um canto de esperança dentro da noite clara, nítida e construtiva que canta em mim, neste instante, como se fosse uma primavera de perfumes e cores, dentro das águas frias do inverno caprichoso.
Ivan Sarney
Enviado por Ivan Sarney em 22/01/2016
Reeditado em 24/01/2016
Código do texto: T5519520
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