A manhã e a cobra verde


 
Na manhã que amanhece verde, uma fina e ágil cobra verde se contorce sobre as folhas orvalhadas de uma pequena árvore, realçada entre a vegetação que guarnece o mangue, e margeia as pistas esportivas, na Lagoa da Jansen. Esse espetáculo, inusitado para nós, nos obriga a parar por um momento, para vê-lo, senti-lo e nos emocionar.
As poucas pessoas que por lá transitam, cumprindo um itinerário cotidiano, vão passando por nós, regulando os passos, olhando os relógios, conferindo o tempo e sentindo as horas da manhã, que se revela ainda úmida, lavada pelo sereno da madrugada.
Muitas nem se dão conta da cobra verde, erguida e atenta, sobre a árvore. Outras que olham não parecem se interessar e seguem, sem se importar com esse episódio que a manhã nos oferece, ainda tão cedo, nesse dia de abril.
Meu amor e eu, atentos aos movimentos das formas naturais, interrompemos a caminhada para contemplar, para nos enternecer e, de certo modo, para nos amedrontar, também. Ela, muito mais que eu, receosa por nossa integridade, temendo por nós dois.
A pequena cobra verde, no entanto, não parece incomodada com nossos olhos, com nossos corpos, nem com nossa reação humana: ergue a cabeça, esguia, se exibindo, e alterna o corpo fino, longo e flexível, de forma sinuosa, como a se esgueirar de uma lança, de uma flecha, de um punhal invisível, há poucos metros de nossos corpos.
Mas não ousa deixar o pequeno arbusto. Está atenta a nossos movimentos humanos, que não parecem intimidá-la. O que talvez ela tente nos dizer é para guardarmos a devida distância; para não nos aproximarmos além do ponto em que nos encontramos; que ela nos vê e respeita nossa presença, no cenário e na manhã, no momento em que se veste de verde, como forma talvez de transmudar-se, usando a estratégia de camuflagem, de mimetismo dos camaleões.
Tomados, então, pelo encanto da cena com que a manhã nos presenteia, decidimos seguir nossa caminhada e vamos, levados pela necessidade de ir, pelo privilégio de havermos testemunhado a beleza daquela cena, tão inesperada, tão instigante, mas tão plena e tão motivadora.
Vamos seguindo os dois, sem olhar para trás, para os passos que ficam no caminho, mas sem esquecer, um só instante, da longa e fina cobra verde.
Janaína, minha mulher, meu amor, aperta mais e mais as mãos quentes, firmes e fortes, que vão estar comigo a vida inteira, e caminhando, aconchega a cabeça no meu ombro, aliviada do susto, do medo de se viu tomada, de repente, sentindo-se ao alcance da pequena e desconhecida cobra.
Assim seguimos conversando, sorrindo, identificando os sinais do amanhecer que o dia vai exibindo diante de nós, diante de todos os que ali caminham, habitualmente, e que nos acostumamos a ver, a cumprimentar, a nos confraternizar no gesto de dizer e de ouvir: Bom dia!
No caminho, mais próximo do restaurante Kitaro, um automóvel, sem os dois pneus dianteiros, resta, de vidros fechados, úmido de sereno e abandono, àquela hora do dia. Ao vê-lo, concluo que foi seu proprietário foi vítima de furto, talvez enquanto se divertisse na noite que a madrugada sufocou.
Ao retornar ao veículo, deve tê-lo encontrado assim e, desse modo, surpreendido, sem poder conduzi-lo, tomou outra condução e partiu para vir deslocá-lo quando a manhã estiver, definitivamente, instalada no dia.
Apesar da aridez desse cenário, desse outro lado do dia que amanhece, ressaltando as vicissitudes da vida, o espelho d´água da Lagoa está alto e nos parece limpo, sem odor que o descredencie, sem nuvem que o embace e tolde, e consegue refletir um conjunto de edifícios que o margeiam, de forma límpida, nítida, clara, produzindo um espetáculo esplêndido, porque a claridade da manhã despertada já esparze seus primeiros raios de sol, sobre nossas cabeças.
Assim fazemos o caminho de ida e o de volta, entre conversas, cenários, pessoas, pássaros que passam voando, como os bem-te-vis. Um pensamento, no entanto, não sai de minha cabeça. A alegre e fina cobra verde estaria, ainda, na pequena árvore? Teria voltado para o denso arvoredo que protege a Lagoa? Que destino a manhã lhe teria reservado, exposta como estava aos olhos e à temeridade humana?
Meu amor, crédula e aliviada, responde: – Voltou para o arvoredo. Não deve estar mais lá.
Chegando à pequena árvore, onde estivera a cobra verde ao alvorecer, uma desagradável surpresa nos aguarda. Ela, que tanto nos extasiara e enchera de apreensão aquela manhã, já não estava lá. Nem lá, nem em suas imediações mais próximas. Era tudo capim e grama verde cobrindo o chão e aquela árvore pequena, abandonada, parecendo menor, mais árida, mais fria e sozinha, sem a cobra verde que a visitara aquela manhã.
Assim, desapontados, vamos seguindo na pista de nossa caminhada, fazendo o percurso de volta, lamentando a ausência da cobra. Alguns metros dali, no entanto, no local de atravessarmos a avenida, tomando o caminho de casa, uma nova e dramática surpresa nos toma de espanto e revolta.
No meio da avenida, contrastando com o asfalto negro e frio, a alegre cobra verde, estendida, inerte, disforme; esmagada, por várias rodas de veículos, expõe e denuncia a crueldade humana, e torna a manhã orvalhada vestida de uma nuvem sombria, de uma ironia densa e cética, para quem sonha e celebra a vida, em harmonia com a natureza.
Ivan Sarney
Enviado por Ivan Sarney em 22/01/2016
Reeditado em 24/01/2016
Código do texto: T5519518
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