A garça solitária e a lagoa
Costumo vê-la, sempre, bem cedinho, no encanto de minhas caminhadas matinais, em torno da Lagoa da Jansen. Eu, na tarefa de cuidar de mim, sentindo meu corpo harmonizar-se, inteiro, com o que há de energia no verde vegetal das árvores, das folhas, no vento fresco e brando que as sacode; no sol, que vai aquecendo as peles e dourando os corpos; nas pessoas que ali registro, em encontros fortuitos e pontuais; nos pássaros que voam, cruzam nosso caminho e cantam, tagarelas, se exibindo para chamar a atenção de Janaína, especialmente os bem-te-vis.
É sempre ali que costumo vê-la, sentindo a presença de Deus na sinergia da vida que esplende, em torno de nós. Nem a manhã, na umidade de suas relvas orvalhadas, nem o sibilo dos pássaros, nem a sonata do vento nas cordas verdes do mangue e das palmeiras que ali vicejam; nada a ela se compara, pelo charme, pela beleza, pela elegância com que resume a paisagem que integra.
Refiro-me a uma garça majestosa que pode ser vista ali, mais ou menos em frente ao Buteko da Lagoa, onde árvores frondosas emergem das águas como ilhas de preces, como mãos de súplicas, destacando-se no cenário pela curiosa paisagem que compõem.
É dela o privilégio de mirar-se no espelho d’água em que se encontra e de mover-se, com serena elegância, como quem confere as formas, como quem avalia seus domínios, como quem consagra seu espaço e confere, com seu olhar de conquista, a extensão de sua posse, onde parece reinar sobre os peixes, ás águas e tudo o que há de vida no cenário que a realça.
É dela o privilégio de andar devagar, quase com mesma leveza do vento; de pisar suave, como as manequins; de alongar o pescoço sinuoso e recolhê-lo em seguida, com a mesma elegância com que evita molhar suas penas, e faz exibir sua formosura no espaço que domina.
Passo a passo, com gestos comedidos, move seu corpo elegante entre as águas mansas, ora alongando o pescoço, como quem quer ver mais adiante; ora o recolhendo, para manter a postura de quem se deu, finalmente, por convencida. Refiro-me a ela, dentro de mim, como a dona da lagoa, pela forma com que parece dominar a vida natural que ali se encontra.
Mas esse domínio, se ele de fato existe, ela o exerce com extrema naturalidade, a notar pelo modo silencioso com que se move e pára, como quem cumpre uma rotina de inspeção e conclui pela normalidade. Gosto de vê-la em seus gestos elegantes, em seu garbo, em seu narcisismo, quando se mira e move-se, contemplando-se no espelho das águas que lhe servem de cenário.
Nem o vento forte, tão próprio da estação, parece alterar o rito de seus movimentos, a saudação que faz às manhãs e à primavera que se denuncia toda, em cores, em formas e perfumes. Do outro lado da lagoa, e em quase toda a sua extensão, a beleza de muitas outras garças brancas enche de vida a paisagem cotidiana.
Essas outras garças, conquanto belas e elegantes, não ostentam o mesmo charme e não inspiram os mesmos sentimentos que a garça que me seduz, exatamente ali, onde quase perfuma o vento fresco da manhã. Pelo porte que ostenta, pela forma como se impõe, é como se fosse a mãe de todas as outras garças que ali vivem. E vivendo semeiam, na alma de cada um de nós que as vemos, a reflexão sobre a pluralidade da vida, em suas formas variadas e em sua importância natural.
Aos meus olhos, repletos de humanismo, a primeira emoção sugere o encanto de viver entrelaçado ao belo; a reflexão de que a vida é arte, em que os elementos leveza, cor, forma, ritmo, textura, luz, sombra, perspectiva, são explicitados por tudo o que tem movimento próprio, tudo o que é vivo, na natureza.
A paisagem como símbolo de fusão desses elementos, como cenário natural, como ponto de fuga, de toda a obra criada por Deus. Uma garça branca e bela, integrada à paisagem da manhã, pode ser motivo de outras reflexões e o símbolo de muitas esperanças que construímos em nossa vida, e que não podem estar contrapostas à vida que existe na lagoa.
Uma garça na lagoa é mais necessária ao equilíbrio da vida na lagoa, como predadora de pequenos peixes, do que aos meus olhos de contemplação. Ou ainda, a garça está na lagoa não para que eu a veja, para que a vejamos e com ela nos encantemos.
Uma garça está na lagoa para completar seu ciclo de vida, para perpetuar sua própria espécie, para dar vida a outras formas de vida que ali se desenvolvem. Mas nem por isso é menos bela e menos garça, em sua aparente solidão. E falo de solidão porque sempre a vejo sozinha.
Talvez não seja essa uma peculiaridade das garças que voam em bandos, que vejo em bandos do outro lado da lagoa, a defenderem seus espaços de caça, mas quase sempre, juntas. A garça que me encanta não. Ela está sempre sozinha, solitária em seu espaço de domínio, como se bastasse a si própria, como se estivesse além de si, além daquele espelho d’água, onde se mira e onde é refletida em sua brancura e solidão.
Às vezes, precisamos estar como a garça solitária, para refletir e nos recompor, para nos aprimorar e nos encontrarmos em nossa unidade de corpo, alma e espírito. Outras tantas vezes, não. Precisamos estar entre os outros, na comunhão de nossos sentimentos, de nossos seres transitórios, construindo a beleza o encanto de ver, de sentir, de sonhar e projetar esperanças.