Expedição Botânica

Esta crônica descreve um evento histórico de São Sebastião do Paraíso, MG, ocorrido em 1945, quando faltavam quatro meses para terminar a Segunda Guerra Mundial e os Irmãos Lassalistas dirigiam o Ginásio Paraisense. Foi uma excursão científica realizada para explorar aspectos botânicos no município. A mesma excursão fez levantamentos na região calcária de Itaú e visitou fazendas e reservas biológicas naturais no município de São Tomás de Aquino. A importância desse evento vai muito além das questões regionais e seus resultados estão na história da ciência brasileira.

Essa excursão resultou do empenho pessoal do irmão Theodoro, lassalista e professor de ciências do Ginásio Paraisense, que constatou na literatura científica a inexistência de informações sobre a flora regional o que lhe despertou o interesse em conhecer melhor as espécies botânicas da região e explorar suas possíveis propriedades fitoterápicas. A realização do projeto contou ainda com a contribuição da direção do Ginásio e do farmacêutico Carlos Grau, que acompanhou parte dos trabalhos de campo, quando ajudou na identificação de plantas medicinais usadas na região.

Alguns imigrantes italianos, plenamente integrados à sociedade paraisense, passavam por momentos de incerteza. A posição assumida pelos fascistas tinha confundido a cabeça de alguns poucos que nada mais faziam do que palestrar em voz alta pelas esquinas. Um grupo de pracinhas paraisenses, alguns descendentes de imigrantes italianos, estava lutando contra o eixo formado pela Itália, Alemanha e Japão.

Foi nesse momento que São Sebastião do Paraíso recebeu, em abril de 1945, a visita do renomado botânico alemão Alexander Curt Brade e do seu assistente brasileiro, Altamiro Barbosa Pereira. Brade faleceu em 1971, aos 90 anos de idade depois de dedicar 70 anos à pesquisa científica e botânica. O objetivo principal era explorar campos, riachos, formações geológicas e reservas biológicas para recolher amostras de plantas nativas e de outros materiais de interesse científico.

Após a seleção das amostras, o material foi transportado para o Rio de Janeiro e inserido ao acervo do Jardim Botânico, onde foi submetido às análises de laboratório. Até então nenhum outro evento do gênero tinha sido realizado no sudoeste mineiro que começou a ser povoado no início do século XIX. A expedição ocorreu a partir de um convite feito pelo Irmão Theodoro, quando realizava estudos no Jardim Botânico.

Ao recompor memórias sobre esse educador lassalista, paraisenses que estudaram no Ginásio Paraisense, na década de 1940, lembram que ele tinha verdadeira paixão pela Botânica. O que confirma aspecto marcante da educação Lassalista, no sentido de valorizar o ensino das ciências naturais e exatas, além das ciências humanas e sociais. Mas, depois de 70 anos, o evento está quase apagado na memória coletiva local, justificando esse registro para a preservação da memória cultural da cidade.

Alexander Curt Brade trabalhou várias décadas no Brasil, no Jardim Botânico e em outros institutos científicos. A extensa produção científica garantiu-lhe honrosa posição na história da botânica internacional. O fato deve ser rememorado em função dos resultados obtidos que descreveram espécies desconhecidas, envolvendo aspectos científicos e o conhecimento popular de plantas medicinais. Foi nesse aspecto que a contribuição do senhor Carlos Grau serviu de referência inicial aos dois cientistas, devido aos seus conhecimentos fitoterápicos, conforme atestam os cientistas

O ilustre botânico escreveu dezenas de artigos com a classificação biológica de espécies de orquídeas, samambaias e begônias naturais de Brasil e na América Central. Chegou ao Brasil, em 1910, depois de embrenhar, por mais de dois anos, nas densas florestas da Costa Rica, de onde saiu triunfante. Mostrou ao mundo espécies raras que ainda não estavam nos catálogos. Em 1928, foi contratado pelo Museu Nacional e, posteriormente, passou a chefiar um laboratório do Jardim Botânico, onde trabalhou até aposentar-se.

A pesquisa foi realizada quando o botânico contava com a maturidade dos seus 66 anos e os trabalhos de campo ocorreram entre os dias 7 e 26 de abril de 1945. Até o final do mês foi preparado o material recolhido e envio para o Rio de Janeiro. Um ano depois, os cientistas redigiram um relatório de 13 páginas, publicado em uma revista científica, em 1946. [Relatório de uma excursão a São Sebastião do Paraíso. Revista Rodriguésia. Jardim Botânico. Rio de Janeiro. Dez. 1946]. Foi esse relatório que serviu de fonte inicial para a escrita desta história, que interliga aspectos científicos e culturais e o registro de saberes populares da região.

Com a expectativa do término da Segunda Guerra Mundial, todos ansiavam por dias melhores. Imigrantes alemães, italianos de japoneses que viviam no Brasil passavam momentos angustiantes. As forças aéreas dos Estados Unidos ainda não tinham lançado as duas bombas atômicas sobre a população civil de Hiroshima e Nagasaki. No Brasil, chegava ao fim o Estado Novo e em São Sebastião do Paraíso, o Ginásio Paraisense estava prestes a completar quatro décadas. Fazia pouco mais de um ano que os Lassalistas estavam na direção do histórico curso ginasial paraisense. Os religiosos eram austeros na vigilância ao comportamento dos alunos, mas também tinham liberdade de jogar futebol com eles. Em certo, momento a equipe de futebol do Ginásio tornou-se imbatível entre todas as demais da região.

Mesmo seguindo a pedagogia criada por João Batista de La Salle no século XVII, praticaram uma educação adequada aos meados do século XX. Isso permitiu que centenas de alunos recebessem instrução humanista e científica durante os 13 anos em que aturam no estabelecimento. Essa foi uma diferença marcante da educação lassalista em relação a outras ordens religiosas que nem sempre valorizavam o ensino das ciências exatas e naturais. Essa filosofia lassalista de valorização das ciências foi praticada pelo Irmão Theodoro, que vez ou outra visitava o Jardim Botânico, para aprender um pouco mais sobre Botânica.

Ao apropriar-se de mais saberes, o irmão tinha uma questão na cabeça: a flora existente em São Sebastião do Paraíso e seus arredores teria sido objeto de um estudo mais amplo? As espécies estariam todas classificadas? As plantas medicinais usadas na região eram do conhecimento dos especialistas? Foi em uma de suas visitas ao Jardim Botânico que conheceu Brade. Enquanto aprimorava seus conhecimentos, o professor lassalista tinha aquela boa ideia fixa na cabeça. Assim, ousou convidar os cientistas para visitarem Paraíso.

Mesmo distante da capital, a cidade mineira serviu de base para preparar o material científico. As plantas colhidas receberiam um primeiro tratamento ainda na cidade, permitindo condições para o transporte e sua posterior inserção nas coleções do Jardim Botânico. Foi então acertado que o Irmão Theodoro integraria a equipe para contribuir no trabalho. O convite foi feito e refeito. A princípio, os dois cientistas gostaram da ideia e ficaram de consultar seus superiores. O diretor do Jardim Botânico concedeu a devida autorização, em portaria assinada em 2 de abril de 1945.

Três dias depois, os dois partiram rumo a Paraíso. Brade e Altamiro chegaram à Estação da Mogiana, na noite do dia seguinte. O experiente cientista sabia que as adversidades da viagem seriam bem menores do que aquelas vividas nas matas da Costa Rica. Assim, partiu tranquilo com alguns apetrechos pessoais, luvas, botas, lupas e um pequeno microscópio. Quando desembarcaram na estação, lá estavam para recebê-los, o irmão Theodoro e o farmacêutico Carlos Grau.

Mesmo não tendo sido possível consolidar a Escola de Farmácia, criada em 1929, da qual fora professor e incentivador, Carlos Grau tinha gosto pela pesquisa científica, conforme registrou Brade no referido relatório. Por esse motivo, dispusera-se auxiliar na realização do projeto. Os trabalhos começaram na manhã do dia seguinte à chegada. Carlos Grau cedeu uma sala do prédio da antiga Escola de Farmácia, que estava com suas atividades encerradas, para servir de base física da expedição.

O primeiro dia de trabalho foi dedicado a uma reunião nas dependências do Ginásio, onde iniciou o planejamento das atividades. Ainda no primeiro dia foi realizada uma exploração na grande fazenda de 30 alqueires anexa ao Ginásio e que tinha sido adquirida pela Igreja Católica. Além dos dois cientistas, participaram da reunião, Carlos Grau, o Irmão Theodoro e alguns estudantes. Nos dias seguintes, a equipe visitou, entre outros lugares, campos próximos ao Rio Liso, aos Baús de Santa Terezinha e Santa Cruz, e às áreas de cerrado no entorno, região da Lagoa Seca, no então distrito de Itaú. A equipe visitou ainda as fazendas Calado, Cachoeira e Fortaleza, essa última localizada no município de São Tomás de Aquino.

As três primeiras semanas foram dedicadas aos trabalhos de campo e a quarta ao preparo do material recolhido para deixá-lo em condições de transporte para o Jardim Botânico. No relatório constam agradecimentos ao irmão Theodoro e a Carlos Grau, pelo apoio material, pelo suporte oferecido e pela presença nos serviços de campo. Os autores afirmam que, se não fosse o suporte recebido, não teria sido possível fazer o trabalho em tão pouco tempo.

Os cientistas conversavam com os moradores dos locais visitados para saberem quais eram as plantas medicinais da região e como as utilizavam. Um aspecto relevante dessa pesquisa consistiu na postura dos cientistas em tentar resgatar o uso popular de plantas medicinais, pois essas utilidades, quase sempre, resultam de práticas, saberes e culturas das populações tradicionais. Uma das dificuldades para fazer esse tipo de pesquisa decorre dos diferentes nomes populares das plantas, que variam de uma região para outra.

A importância dessa expedição foi justificada com base em objetivos do campo da Botânica Aplicada e uma das metas era estudar plantas medicinais possivelmente existentes na região. Foi nessa parte que a equipe contou mais particularmente com a experiência do conhecido farmacêutico paraisense. Foram coletadas 70 espécies, incorporadas ao acervo do Jardim Botânico. Consta ainda no relatório um agradecimento aos moradores mais humildes dos locais visitados, que foram atenciosos no sentido de prestar-lhes informações sobre as plantas. Os cientistas agradeceram aos fazendeiros que permitiram a realização da pesquisa em suas propriedades e por forneceram alimentação, hospedagem e o suporte necessário à realização do trabalho de campo. São citados os proprietários da Fazenda Calado, Dr. Nelson, senhor Ozelin e Dr. Januário, e ao proprietário da Fazenda Cachoeira, Dr. Luiz Pimenta, no município de São Tomás de Aquino e ainda o engenheiro Niemeyer, da Fábrica de Cimento Itaú.

Os cientistas registram que: “O senhor Carlos Grau, muito prestativo, sempre estava disponível para auxiliar qualquer realização, acompanhou-nos nas excursões, mostrando-se um grande estudioso de plantas medicinais.” Consta ainda que o generoso farmacêutico auxiliou os trabalhos de catalogação do material, realizados em uma sala do prédio onde funcionou a extinta Escola de Farmácia e Odontologia. Por todos esses pequenos gestos e grandes ideais, todos os cidadãos citados neste artigo têm seus nomes inscritos na história paraisense, que interliga as famosas terras cafeeiras do sudoeste mineiro aos anais da história cultural e científica do Brasil.

Luiz Carlos Pais

Campo Grande, MS, 20 de janeiro de 2016

luiz.pais@ufms.br