Crônica de uma Criança Mimada

Eu sou uma criança. Tenho quase 3 anos, e posso ter tudo. Todos os brinquedos, toda a atenção, todo o amor, todos os estímulos. Foi o que meus pais disseram. Todos vão gostar de mim e fazer todas as minhas vontades, porque eu sou uma garotinha linda. Foi o que eles disseram.

Mas eles não cumpriram com sua palavra. O tempo foi passando, e eu não era mais o alvo de toda a sua atenção, de todo o seu amor. Vozes seg elevavam ao meu redor. Vozes que eu não entendia totalmente, mas que sabia que falavam de mim. Parece que papai não quer cuidar de mim. Era a vez da mamãe. Mas ela está tão cansada. Quer me colocar para dormir. Mas eu não estou com sono. Talvez, com um pouco de sono. Contudo, não vou deixar que vença em sua estratégia para se livrar de mim. Como pode, minha mãe, a pessoa que me prometeu todo seu amor, estar cansada demais para passar tempo comigo, a pessoa mais importante da vida dela?

Então, eu choro. Bem alto. E bato os pés. E insisto com minha fala enrolada de quase três anos que não estou com sono, que não quero dormir. Mamãe fala algumas palavras que não faço muito esforço pra entender. Algo sobre eu precisar dormir porque está escuro. Mas eu não quero dormir. Deixe a luz acesa então, não é pra isso que serve? E continuo choramingando.

Mamãe tenta usar mais algumas palavras, mas já não está mais tão calma. E papai se cansa daquilo e diz que posso assistir TV por mais uma hora. Ele sempre cede. Afinal, disse que eu poderia ter tudo o que quisesse.

***

Tem também a hora de comer. Há vários adultos sentados à mesa, comendo e conversando sobre coisas de adulto. Não estão prestando atenção em mim. Como podem não estar prestando atenção em mim? Meus pais disseram que todos iriam me adorar. Então eu empurro meu pratinho para a frente e paro de comer.

Minha mãe nota. Diz para eu voltar a comer. Eu a ignoro. Ela pega a colher, coloca um pouco de arroz e algo verde e tenta enfiar na minha boca. Mantenho-a teimosamente fechada. Mamãe diz a mesma coisa de sempre: você tem que comer, para crescer e ficar forte. E todos estão olhando para mim agora.

Com a atenção de todos voltada a mim, continuo o show. Em minha voz mais manhosa, digo que não quero comer aquilo. Quero outra coisa. Alguma coisa qualquer que eles prepararam com carinho para mim em outro momento, e eu gostei. Mamãe discorda. Diz que preciso comer a mesma coisa que todos estão comendo. Eu insisto. Se naquele dia, eles tiraram tempo para preparar aquela comida deliciosa pra mim, por que não podem fazer isso de novo hoje? Não disseram que eu teria tudo que quisesse?

Papai se levanta e vai até a geladeira. Tira de dentro dela um pote de plástico com comida. Não era exatamente o que eu estava pedindo, mas ele a tira do pote, coloca num novo prato, esquenta no micro-ondas e o apresenta a mim. Sigo o drama por mais alguns instantes, mas acabo comendo. Afinal, agora a atenção deles estava toda voltada pra mim.

***

E então é hora de brincar. Meus brinquedos estão todos espalhados pela casa. Dezenas e dezenas deles. Em cima do tapete da sala. Por todo o meu quarto. Na escrivaninha do quarto dos meus pais. No banheiro (porque eu só deixo mamãe me dar banho se puder ficar brincando enquanto isso). No balcão da cozinha. E por todo o resto.

Quando eu era pequena, ainda menor e mais fofinha do que hoje, meus pais me traziam brinquedos novos o tempo todo. Nem bem eu aprendera a brincar com um, aparecia outro, ainda mais brilhante, ainda mais interessante, ainda mais rosa. E os brinquedos antigos eram jogados num canto para dar espaço aos novos. De novo e de novo.

Então, hoje, por que me dão aquele olhar exausto quando me canso rapidamente dos brinquedos na minha frente e peço outros? Por que não se esforçam mais para fazer brincadeiras novas comigo, pra me fazer dar risadas? Papai brinca comigo, mas logo está olhando para o celular de novo. E mamãe anda séria, muito séria. Preciso fazer alguma coisa. Então jogo meus brinquedos pra longe e pego as coisas da gaveta da mamãe pra usar como brinquedo. Aí ela nota. E tenta tirar as coisas da minha mãozinha, e eu choro. Mamãe diz que tenho que brincar com os meus brinquedos. Mas eu já enjoei deles. E bato os pés de novo. Eles não disseram que eu poderia ter tudo que quisesse? Eles não me amam?

E papai larga o celular e vem brincar comigo. Paro de chorar e dou um sorriso. Não porque estou me divertindo, mas porque venci outra vez.

***

Eu sou uma criança. Posso ter tudo o que quiser. Foi o que meus pais disseram. Vamos viver muitos anos juntos ainda, nós três. E eu vou me certificar todos os dias de que eles continuem cumprindo com sua palavra.