Tarde no shopping
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, 7 de janeiro de 2016
Sempre gostei de shopping. Sempre, não! Na verdade, a partir da inauguração, em 1974, do Shopping Center Um, o primeiro de Fortaleza. Com entrada pela Avenida Santos Dumont, tinha como loja âncora o supermercado Jumbo. Contava com dois cinemas, estacionamento no subsolo e mais de 40 lojas e lanchonetes. O andar superior era acessado por uma única escada rolante, não climatizado, mas contribuiu muito para expansão de Fortaleza para o lado leste da cidade, diversificando as opções comerciais e de lazer dos fortalezenses.
Quando morava em São Paulo, algumas vezes frequentei o Iguatemi de lá, inaugurado em 1966. Estudante à época e sem dinheiro suficiente, minha frequência a esse palácio do consumo era diminuta, muitas vezes apenas a passeio. Já casado e morando em Itabuna, Bahia, os nossos períodos de férias trabalhistas eram passados em Fortaleza, quando tínhamos oportunidade de levar as crianças ao Center Um. Depois, a partir de 1982, com a inauguração do Shopping Iguatemi, maior e mais atrativo, ele passou a ser a opção dos fortalezenses e nossa, é claro.
Hoje, são mais de quinze, só os considerados de padrão internacional pela Associação Brasileira de Shoppings Centers (Abrasce). É em um deles onde estou agora, o mais novo da cidade e o mais sofisticado. Sentado em uma cadeira acolchoada, frente à uma mesa, na Praça de Alimentação, uma bela estrutura arquitetônica, que abriga restaurantes, lojas de fast food, sorveteria, salas para jogos e festas, pizzaria, comida japonesa, chinesa, mexicana, tailandesa, portuguesa, caseira, churrasco, massas, cafeteria etc.
Estou esperando minha esposa, que resolveu assistir ao filme As Sufragistas, com minha neta. Terei duas horas e meia para fazer o que me der vontade. Não fui com elas por acreditar que nã gostaria do filme. Prevenido, trouxe um livro para ler: “O arroz de Palma”, de Francisco Azevedo. Depois direi alguma coisa sobre este livro, pois estou achando fantástico o modo como o autor conduz sua estória.
A Praça de Alimentação do Shopping é agora minha sala de leitura. Por enquanto tudo calmo, pouca gente, consigo ler sossegado. Como poucas pessoas passam próximo a mim, não me tirando a atenção que devoto à cada página, faço uma leitura vagarosa e atenta, descansando a cada subtítulo do romance, correspondente a duas, três ou quatro páginas. Nesses curtos períodos de descansos observo as pessoas, seus movimentos. Depois viro a página e começo a ler mais dois ou três subtítulos seguidos. Após quarenta e cinco minutos de leitura, estou me sentindo cansado. Passo a preocupar-me com o ambiente ao meu derredor, observar mais atentamente as pessoas, seus passos, seus gestos, o que estão escolhendo para ali comer. Observo os grupos e seus componentes, idade, tento adivinhar a condição econômica, pela quantidade e de onde vêm suas preferências gastronômicas. Não me contenho, estou a rabiscar as folhas em branco do livro que estou lendo, pondo nele o que de interessante observo.
Duas belas moças, grandes bolsas, passam por mim e se encaminham ao McDonald’s. O que elas escondem de mim em suas bolsas, gostaria de saber. O senhor de camisa verde e barrigudo pega mais um copo de cerveja. Passa por mim, já conversando sozinho, dirige-me o seu olhar confuso e pensa: o que esse doido está fazendo sentado à mesa de uma Praça de Alimentação, lendo um grosso livro e fazendo anotações em suas páginas? E, por certo, completa ele: cada qual com a sua mania! Olho para ele e deixo-o desconcertado, ele segue em direção à sua mesa, onde aguarda a sua família. Eu me indago: será que ele vai voltar dirigindo para o seu destino? Espero que não!
Uma criança sai correndo, deixando a mãe preocupada, pois amamenta uma outra e o pai das duas, encontra-se na fila do McDonald’s, por sinal agora grande e confusa. Outra criança rodopia no salão, cai e machuca a boca, desespero para os pais. Um casal de adolescente disputa uma taça de sorvete, cada um tem a língua maior que o outro, eles riem e se divertem com a brincadeira. Um casal de idoso chega à mesa ao lado trazendo bandeja com duas xicaras de café e dois salgados. Educadamente conversam baixinho, mas é possível perceber que falam dos netos, e bem, pois sorriem todo o tempo.
O livro já se encontra quase todo riscado, mas eu vou passar mais de meia hora por aqui. Vou continuar escrevendo, agora na capa e na contracapa.
Uma família inteira, pai, mãe, filhos e netos se aproxima, procuram juntar as mesas, mas elas estão fixas ao chão. Saíram em busca de mesa maior. Estão longe agora, não posso observá-los. Para uma das mesas que a família procurou juntar, se dirige um casal com dois filhos pequenos. O pai sai para fazer o pedido do grupo e a mãe fica tomando conta dos dois capetinhas, com idades muito próximas. Ela, muito jovem, aparenta ter no máximo vinte anos. Falta-lhe experiência, ou moral, para conter as duas crianças. Eles arrastam cadeiras, se estapeiam, deixam cair os brinquedos que acabaram de ganhar, duas senhoras ao lado mudam de mesa, eu me divirto com a cena. Outras famílias chegam, carregando seus “comportadíssimos” filhos. Isso aqui vira uma zorra, suco, guaraná, batata frita, sorverte, pedaço de sanduíche se espalham pelo chão. Algumas crianças choram, as mães tentam consolar, umas têm sucesso outras não. Para mim nada disso é estranho. Em outros momentos de minha vida de pai e avó de pequenos fui protagonista desse teatro, não tão burlesco assim.
Paro de escrever, concentro-me e meu HD cerebral começa a funcionar. Sem ação de controle, algumas lágrimas escorrem pelos cantos de meus olhos. Não me preocupo, elas surgem para serem derramadas. Imagens nítidas da alegria se formam em minha mente, meus pequeninos entrando no shopping. Eu quero isso, eu quero aquilo, eu pedi primeiro, não, fui eu! A mãe adverte-os: o que combinamos quando saímos? Comportem-se, caso contrário voltamos para casa! E aí se fez o silêncio. Essa euforia sempre estava presente nesses momentos. Eu e minha esposa também estávamos eufóricos, ficávamos contando os meses para a chegada das férias. Onde morávamos não tinha shopping, ver os nossos filhos alegres assim, completava a nossa felicidade, por isso sempre repetíamos a dose a cada três dias. Já cansados, íamos para a Praça de Alimentação, cada um tinha a sua preferência gastronômica, todos saiam satisfeitos e perguntando quando voltariam. A chegada dos netos o ritual se repetia, a responsabilidade de contê-los era dos pais. Ficávamos felizes em participar desses momentos, principalmente por percebermos que nossos netos se tornaram tão educados quanto nossos filhos. Quatro desses netos já são adultos, nenhum ainda nos deu bisneto, mas ganhamos, há oito anos, outro neto. Este ano chegarão mais dois. É a família crescendo, a alegria aumentando. Faço-me uma pergunta: terei força e disposição para estar com eles em uma tarde de shopping como esta? Estarei aqui para vivenciar as suas peraltices? — Pergunto-me, com doce tristeza.
Minha esposa e neta chegaram, despertaram-me de minhas saudades e perguntaram o porquê das lágrimas? Nada respondo, olho para o livro que estava lendo e vejo-o todo rabiscado. Esta última parte eu psicografei?
Ao sair da Praça de Alimentação do shopping percebo que estou com a alma mais leve. Recordei-me das férias passadas em casa de meus pais, da alegria com que eles nos recebiam, das noites de Natal, quando meu pai, sentado em frente à árvore de natal, armada na sala, em companhia dos filhos, noras, netos, e ele a distribuir os presentes. O sofrível era o retorno para a cidade onde morávamos, meus pais na calçada, olhos marejados, acenando para nós até o nosso carro sumir ao longe. Saudei todos os encontros com os irmãos, com os amigos, as visitas aos tios, os banhos de mar e, é claro, as tardes de shopping com os filhos e netos. Que coisa boa!