EU

Escrevo essas mal traçadas linhas, não apenas como Narciso ao escrever cartas, para si mesmo, insuflando seu ego e contemplando-se nos desenhos simetricamente construídos por suas pelas palavras, que os mantinham como ele é, Narciso.

Minhas tortas e pendentes palavras não me permitem retirar daqui um espasmo de beleza ou um suspiro do pus da ferida aberta. Para onde foram todas as sintaxes, morfologias, semânticas e outras convenções de nossa exotérica, ou seria esotérica, língua. Língua drummoniana, língua machadiana, que estende a sua bandeira no mastro mais alto, que nos lembra de uma estrela na manhã.

Acordo nada, mantenho-me nada e durmo como despertei, um fado. Porque Odisseu deveria prender-se ao nome dos lobos, os quais estavam prestes a abocanhar sua mais valiosa ovelha, se para ele seus inimigos não passavam de imundas pedras no seu caminho e logo seriam esmagados por sua astúcia. Anjos tortos, escavações pulmonares, quimeras e tudo mais, que poderia ter sido e não foi. Somente me restam os excrementos de meu tempo.

Minha forma é amorfa, meu conteúdo deforma nossa bela arte com as palavras. Eu sou o espírito que tudo nega, diria Mefistófeles. Escrita suja de sangue e graxa, devaneios e mais nada. Lima Barreto passou pelo hospício, Augusto dos Anjos se intitulou de sangue tísico. Eu me aprofundo nas fezes da vida e o que me sobra é essa folha em branco.

Tempo para conversas, tempo para ouvir, tempo para discutir, onde estais senhor de tudo? Tempo....

Sobra-me, apenas, o ópio das linhas não escritas, aqui despejo todo meu tédio, minhas alucinações convulsionantes e vomito toda podridão metastaseada em mim. Não desejo ter graça para que me levantem ramos, quero me banhar nessa terra em transe e dela retirar toda sua apurada e malformada forma de vida. Queria ler Balzac, mas ele transfigurou-se em alguns cifrões, que não posso obter. Não temos poetas, não nos sobram nenhum; os Antonianis morreram, os Passolinis desapareceram. A infecção tornou-se sistêmica, consome pouco a pouco todos os órgãos e de mim ela já se apoderou completamente.

Assumo esse sofrimento como meu e, por assim ser, somente meu, bens não possuo, dinheiro muito menos e nem os desejo. Procuro o naufrago de Crusoé, a sensatez de Dedalus e a ideia fixa de Brás. Os tempos são de fezes, diria o itabirano. De minha janela, vejo a felicidade animal das crianças que correm atrás de bola e pipa, seus olhos brilham ao ver a esfera rolar de lá para cá, alegram-se ao ver seu produto pipaear no céu. E mal sabem eles que os tempos são de fezes.

Se lhes pareço louco, louco eu sou para vocês, não me coloque em quadros na parede, pois as molduras são demais para mim. Me rasque, me amasse e me coma com a boca desejosa por porcarias, lixo pós-moderno. Ele esta na cruz pelado e rasgado, nos lavou de sangue de cordeiro e de sangue são feitas suas vítimas. Não jogou, não contraiu dividas, não teve mulheres, mas, ainda assim, não passa de um corpo sujo e rasgado. Gloriosa Roma e maldito sejas Constantino.

Não prendendo que me leiam, já não possuo pretensão alguma, mas se o acaso, algum dia, lhe entregar esse papel em vossas mãos saiba que não te desejo. Este é meu refúgio e não o seu, nunca saberás o que me levou a escrever e, muito menos, quem eu sou. Sou um eterno devir, o movimento é meu refúgio subversivo. Estou e não sou; sou e não estou. O mundo era pequeno para Alexandre. Estou prestes a acabar-me e que meu sangue morto seja apenas a falta de vida de meu corpo. Crucifiquem-me, eu sou Barrabas, sou a puta Maria Madalena e sou santa e virgem, Maria. Sou o que quiseres que eu seja, não pertenço mais a mim, sou, agora, seu.

Ernesto Gomes
Enviado por Ernesto Gomes em 14/01/2016
Reeditado em 07/02/2016
Código do texto: T5511013
Classificação de conteúdo: seguro