Abutres

A contemplação da morte é sintoma da vida.

As sirenes da polícia rodavam o azul e vermelho característicos, iluminando regularmente o estacionamento escuro em frente a varias lojinhas modestas e um curso de inglês, todos devidamente fechados, pelo horário avançado da noite. Apesar disso o ponto de ônibus ainda estava cheio, horário a muito deixou de ser empecilho para trabalho. Atras do ponto, a multidão começava a se amontoar ao redor da cena. Devia ter umas 30 pessoas ali, nada que fosse uma legião romana. Entretanto, a luz oscilante dispersa pelas gotas da fina chuva que caía, chamou minha atenção.

Um homem havia sido baleado, o policial mais próximo me informou, apoiando suas mãos no teto do carro, provocando uma aproximação incomoda, daquele jeito que só quem detêm certo poder sabe fazer. "Pobre rapaz", disse uma moça que estava por perto. "Pra morrer desse jeito assim, boa coisa é que não era", escarrou o oficial. Ouvir esse tipo de coisa nessa situação me fez estremecer amarrado em meu cinto. A truculência policial n]ao me era novidade, apesar de eu mesmo nunca ter experimentado na própria pele. Sabia que isso não nem um decimo do pior, mas ouvir aquilo de um mantenedor da ordem me fez perder alguma coisa.

Uma criança passava apontando e gritando o nome da mãe no colo dela, enquanto a mesma repetia pra que ela não olhasse, mesmo com os olhos vidrados no caos silencioso. Parecia uma micro anomia coletiva, onde aquele ocorrido despertou aquela falta de sentido que as vezes vem em todos nós. O cara de vermelho e de mãos na cintura parecia pensar que podia ser ele ali. Poderia ser qualquer um de nós, salvo que alguns tem mais metais, pessoas e cédulas de proteção. Mas a morte e a bala quando vem, ela ri de suas posses e do mijo que lhe escorre ao morrer. Ela apenas passa, lhe rasgando, regojizando com finalmente mais um trabalho. Ela podia escolher qualquer um de nós. Mas é o rapaz que estava jorrando morto seus aproximadamente 3,8 litros de sangue no chão, ainda fluindo e escorrendo de forma viçosa pelo chão. Parecia ter sido mais de 7 tiros. Animalesco. "É isso ai campeão, a vida é assim mesmo. Vamo andando aí que não é pra bloquear a via", o policial bateu duas vezes no capô do carro e voltou pra viatura. A ambulância já estava chegando, o apito era audível. Engatei a primeira e segui viagem, mais alto que qualquer lamento e variação de efeito Doppler era o riso da morte naquela noite.