Juventude Transviada
Acostumado aos odores sensacionalistas dos programas abertos, desprezei o olhar roxo que preenchia a tela. “Mais uma que apanhou do marido”, pensei, enquanto resmungava o sumiço do controle remoto. Perdido no peso dos cobertores lutei contra a preguiça e percebi que a coleção de hematomas da personagem ultrapassava o usual. “Porra, mas quantos maridos ela têm?”.
A curiosidade espontânea refletia na força com que esmagava a tecla gasta que controlava o volume. Sirlei. Esse era o nome da presença desfigurada. Imóvel no ponto de ônibus, aprendeu no sofrimento carnal que a vida não é passageira. Sob a fúria latente, e facilmente volátil da adolescência mimada, sentiu corpo e alma serem amassados por punhos fechados e bicudas importadas. Os gritos desafinados abasteciam a combustão raivosa dos marginais de rostos bem-cuidados, inocentando o silêncio.
Alguns indignados com a situação condenaram a sorte da empregada. “Coitada, estava no lugar errado, na hora errada”. Sinceramente, Sirlei estava no país errado. Afogada em promessas descartáveis, a sociedade prefere cobrir suas feridas, esquecendo de limpá-las. A nobre nação do futebol “passa a bola” até o momento em que os sintomas percam sua relevância. A ânsia comportamental que motiva nossas indignações aumenta a úlcera social sem remediá-la. As visitas estão proibidas. O Brasil está na UTI.
O núcleo familiar, principal responsável pela educação e comprometimento filial, esconde-se dos desafios com medo de ser julgado. Ao libertarem suas crias despreparadas no caos externo, esquecem-se da sedução que tal ambiente gera na contestação adolescente. Estes, abraçados pela aceitação irracional constroem argumentos para os murros que ensaiam. Assim, os pais que sonham com os filhos médicos, ironicamente aceitam suas opções de serem monstros. “Se isso faz você feliz, vá em frente, filhão!”.
Sirlei não apanhou sozinha. Os gemidos arrastados entre os dentes ultrapassaram a tolerância blimpada. Envergonhamos-nos das nossas falhas, sofremos a indiferença que alimentamos e pedimos desculpas por tirarmos das coleiras os animais que devíamos educar. As faces dos responsáveis, escondidas em capuzes de grife, cobrem toda a juventude agressiva, despreparada e insolente que maquiamos nos álbuns de família. Desculpa, Sirlei. Acreditamos que a liberdade provocaria o senso de responsabilidade das nossas crianças. No fundo, perdemos o dia em que se tornaram homens.
Logo após a ocorrência, a aristocracia culpada e com sangue nos punhos tentou argumentar a tragédia. “Achamos que era puta... Achamos que era puta...”. Com os olhos ainda vermelhos, ninguém acreditou.
Eles não seriam capazes de agredir as próprias mães.