Simplicidade nas Mãos de Ariano Suassuna
Um final de semana daqueles que ficam gravados na memória da gente por um tempo suficiente para ser considerado eterno. Eu havia chegado da capital baiana naquela madrugada, tinha reencontrado o mar depois de mais de dois meses sem o ver. Havia sentido meus pés pisar aquela areia tão gostosa, sentido as ondas banhando meus passos e limpando os caminhos por onde eu passaria. Eu estava leve, como sempre fico depois que Iemanjá me cobre com seu vestido azul.
Por volta das dezoito horas arrumei-me para assistir a aula-espetáculo de um dos grandes nomes da nossa literatura e autor de cenas que me fazem rir até hoje. Na faculdade sempre falamos muito nele, nas suas obras e, talvez por ver seu nome sempre acompanhado de outros grandes escritores de nossa língua como, por exemplo, Manoel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, entre outros, fica na cabeça da gente a impressão de que também ele já habitava planícies mais altas e dignas da sua sabedoria.
Que emoção foi ver o palco da Concha Acústica de Petrolina ser invadido naquela noite de 25 de setembro de 2005 por Ariano Suassuna. O público levantou para recebe-lo entre muitos aplausos. Não pude deixar de notar a singeleza da mesa que servia de tribuna para o poeta, coberta com um pano de chita, igualzinho àqueles que se usam na roça para cobrir a cama, o pote, a mesa, e também fazer as roupinhas das crianças. A praça da Catedral de Petrolina iluminou-se com a simpatia do Ariano, que discorreu sobre temas da língua portuguesa tratados de forma engraçada e de maneira tão envolvente que todos entenderam o recado.
Ao final, com a apresentação do grupo de dança “Samba de Véio” da comunidade da Ilha do Massangano, pude ver meio que de canto de olho, visto que eu estava espremida entre os tantos admiradores que também queriam uma aproximação maior com o poeta, um Ariano menino, moleque, catingueiro. Senti-me flutuar com aquela imagem: Ariano Suassuna dançando “samba de véio”, com um sorriso largo e traquino. Um encontro de poesias. A palavra do poeta e o ritmo do povo num equilíbrio lindo, num enlace perfeito. Um desses presentes que Deus dá a quem tem olhos de ver e alma de sentir.
É mesmo um menino o nosso poeta que não parava quieto e movimentava-se o tempo todo para atender ao público que insistia em chamá-lo. De um lado para o outro, ele dava trabalho aos que dele “cuidavam”.
Após uma fila imensa, chegou então a minha vez de falar com aquele que tanto encanto causa em mim. Sentei ao seu lado com meus dois livros nas mãos e fiquei calada, senti-me menina, envergonhada, talvez pequena, fagulha, mas brilhante e com vontade de brilhar ainda mais. Foi dessa forma que senti os olhos do poeta pousarem sobre mim. Com uma caneta e um papel na mão ele disse:
- Diga seu nome, filha – já pronto para me dar o seu autógrafo.
- Não vim buscar autógrafo. Vim trazer-lhe o meu, juntamente com o meu trabalho – disse eu na minha ousadia nordestina.
Ariano recebeu em suas mãos a minha essência que eu, trabalhosamente, consegui publicar em livro. Conferiu se estava autografado e sorrindo me agradeceu.
Foi tudo muito rápido, mas eu nunca esquecerei do que senti ao ver as mãos de Ariano Suassuna folheando o meu “Simplicidade”. É como uma fotografia na minha mente. É como um banho de doce arrepio no meu corpo. É como um prêmio merecido. É como sentir os pés descalços correndo atrás da bola nas areias do meu saudoso Barro Branco, ou quem sabe, o prazer de conseguir tirar o umbu mais alto e mais inchado do umbuzeiro do açude velho, enfim, é como poesia para a minha alma.
Ariano Suassuna é humano, um homem de carne e osso, com um corpo que lentamente se rende à ação dos anos. Mas Ariano é mais que isso. Ele encerra em si a poesia na sua sublimidade, e numa noite de primavera me deu de presente a imagem da simplicidade em suas mãos.