1985: UM ANO FATÍDICO
Os movimentos estudantis e operários de 1988 na Bahia tinham por objetivo o enfrentamento ao regime militar que impedia as liberdades individuais, a autonomia dos sindicatos e protagonizava a superexploração do trabalho preconizada pela política econômica da ditadura. A queda da ditadura era interesse dos estudantes, classe média, intelectuais e operários.
Em 1968, eu estudava no Ginásio Comercial Silvino Marques, do SENAC, onde o meu pai era diretor da escola. O Ginásio ficava bem no meio da zona de conflito, na Rua Ruy Barbosa, centro de Salvador, uma rua paralela à Rua Chile, no primeiro andar de um prédio antigo.
Estava cursando o 2º ano ginasial, acredito que equivalente hoje ao 7º ano do primeiro grau (com as devidas diferenças, porque naquela época, quem estava no 2º ano de ginásio apresentava uma boa bagagem de conhecimento e politização). Em resumo, o ensino era bem melhor.
Nesse mesmo ano, uma professora de datilografia nos propôs dar um curso todos os dias nas férias de julho para que nós recebêssemos o diploma de proficiência no final. Topamos e levamos o curso bem a sério (Datilografia era uma matéria que fazia parte do currículo do ginásio comercial, tanto quanto o curso de Prática de Escritório ministrado pela Escola).
Na cidade, os estudantes secundaristas protestavam em massa contra o acordo MEC-USAID que planejava modificar o sistema de educação no país. E se movimentavam contra a Lei Orgânica que seria adotada pelo governador Luis Vianna. Acreditava-se que tudo não passava de manobra imperialista dos Estados Unidos e que a privatização do ensino impossibilitaria a educação dos jovens classes menos abastadas.
Exatamente nesse mês, eclodiram movimentos estudantis e operários por toda a cidade e todos os estudantes das redondezas sabiam da existência do Ginásio Comercial, onde estudávamos. Nós jovens, sentíamos pulsar em nossas veias o sentimento revolucionário embora não nos fosse permitido participação em movimentos políticos pela diretoria da escola pelo fato da mesma ser pertencente a uma entidade particular.
Estudantes vinham de todas as partes da cidade em passeata com destino à Praça da Sé, onde se reuniam. Alunos de colégios como Severino Vieira, Central, Duque de Caxias saíam em passeata e paravam à porta da nossa escola para recrutar adesões ao movimento. A direção da escola logicamente explicava todos os dias que não poderíamos participar de movimentos políticos. Não nos era permitido sequer emitir opiniões sobre o movimento, mas, ao sairmos da escola, eu e muitos colegas partíamos em direção à Praça Municipal para participar da movimentação que era violentamente reprimida pela polícia.
Íamos todos para a Praça da Sé, e nos reuníamos ao redor da estátua do Padre Dom Pero Fernandes Sardinha, que naquela época ficava numa das extremidades da Praça, em frente ao Edifício Themis. Lá, estudantes discursavam, gritavam palavras de ordem e se enrolavam na Bandeira Nacional, atitudes que soavam como uma provocação ao regime ditatorial. Quando a polícia passava a atacar, nos dispersávamos pelas ruas da Misericórdia e outras ruas adjacentes. O terminal de ônibus para mim ficava no Viaduto da Sé, e quando eu conseguia sair do burburinho, partia para lá porque achava absurda a violência da polícia que atacava a todos com bombas de gás lacrimogênio principalmente na Praça Municipal que era o campo de batalha.
A Primavera de Praga chamava a atenção dos estudantes e operários da Bahia que viam intrepidez nas atitudes do presidente Alexander Dubcek na então República Democrática da Tchecoslováquia. No dia 5 de janeiro o presidente Dubcek desafiando o poderio da União Soviética tentou proporcionar ao seu povo um socialismo mais democrático, o que para os soviéticos representava um afastamento daquele país da esfera de Moscou. Eram medidas reformistas que acabariam num desligamento da Tchecoslováquia do socialismo soviético e isso poderia servir de mau exemplo para países como Hungria, Bulgária, Polônia e outros países do leste europeu. No dia 20 de agosto, a Tchecoslováquia foi ocupada pelas tropas do Pacto de Varsóvia e esse movimento terminou com a prisão do presidente Dubcek e outros líderes.
No mês de outubro, cerca de 1000 estudantes foram presos, muitos deles torturados na cidade de Ibiúna, no estado de São Paulo, durante um congresso estudantil.
No país, no dia 13 de dezembro, a ditadura militar acentuou o clima de torturas e perseguições decretando o Ato Institucional número 5, mais conhecido como AI-5 e extinguiu o pouco de liberdade que porventura poderia existir e o uso da tortura passou a ser de forma mais intensificada.
Com o AI-5, a ditadura militar brasileira declarou ilegais todos os partidos políticos, sindicatos e entidades estudantis.
O movimento estudantil sentindo-se derrotado passou junto com o movimento operário a engrossar as fileiras da luta armada. Como resultado disso, tivemos muitos amigos e companheiros torturados e mortos ou desaparecidos. Para mim, que residia no Largo de Santo Antônio além do Carmo, tudo isso foi traumatizante, pois ouvíamos os gritos das pessoas sendo torturadas no Forte de Santo Antônio, que funcionava como Casa de Detenção e havia alas específicas para presos políticos.