Croniconto: os desconectados

Todo final de ano com a proximidade das festividades do Natal e do Ano Novo, muitas pessoas costumam se reunir com as suas famílias, trocam presentes, comem bem e bebem para celebrar a vida e a esperança no futuro. Bom, pelo menos, isso é o que se vê como costume de alguns que desejam estar em companhia para não passar tais datas comemorativas em branco. Também devemos salientar que nem todos possuem o privilégio de se encontrar em reais condições de celebrar tais festas, pois milhares mal detêm o mínimo necessário para se manter vivo ao longo de todo ano. É a nossa grande ferida ainda longe de ser cicatrizada: a desigualdade social. Há, ainda, aqueles que não consideram essas datas importantes e, por isso, não fazem questão de celebrar. Mas, há um grupo, na verdade um grupo de solitários que não têm com quem celebrar coisa alguma e muito menos a vida. São indivíduos que, por alguma circunstância do seu percurso, acabaram por não travarem relações mais sólidas com outros seres, ou por acasos, ou por falta de afinidade, ou por traumas devidos à relacionamentos do passado. Pessoas que se apavoram, antes mesmo de ouvir a música do Papai Noel já no mês de outubro. E há, dentro deste grupo, aqueles cujas necessidades momentâneas são apenas pequenos serviços que não sabem realizar sozinhos e que precisam resolver problemas urgentes por conta do prazo, mas que acabam por não encontrarem muitos sujeitos dispostos e disponíveis para lhes auxiliarem, justamente porque muitos sujeitos estão preocupados e ocupados com os presentes dos familiares, com o cabelo e a roupa das festas, com as viagens de logo mais. Enfim, roteiro que se renova a cada novo fim de ano. Já é o segundo ano seguido que me deparo com uma situação peculiar e que tanto tem a ver com isso que relato. Vejamos.

No ano passado estava eu a trabalhar na lan house pública, local onde trabalho e onde vários jovens permanecem conectados com o mundo o ano inteiro, e na véspera de Natal eis que se apresenta um homem humilde, aparentando seus trinta e poucos anos cansados, de bicicleta e com alguns papeis na mão. O mesmo me abordou no balcão com muita simplicidade e timidez, relatando que precisava resolver umas questões de um consórcio de uma moto que fez há algum tempo e que necessitava resgatar um dinheiro. Até então, com ouvido atento, não descobri a real intenção daquele homem e nem a minha participação no caso. Mas, logo ele revelara: “preciso mandar um email para a agência do consórcio que fica em São Paulo para eles me mandaram um documento. Só que não tenho email. Nem sei como é isso. Você pode me ajudar?” Aquele pedido viera fulminante e me arrebatara de pronto, arrancando-me da zona de conforto ao saber o tão improvável que é uma pessoa adulta em pleno século XXI ainda não saber o funcionamento da rede mundial de computadores, ainda mais para uma tarefa tão simples que é emitir um email. No entanto, isso é até um pouco óbvio, pois afinal de contas, nem todo mundo tem acesso ao acesso. Mas, em milésimos de segundos após, antes mesmo de responder, pensei o quanto aquela pessoa estava ilhada, apartada da comunicação social mais corriqueira atualmente que era a mídia digital, sobretudo necessitada para resolver uma questão importante de sua vida, e tive a certeza de enxergar no fundo daqueles olhos a cor penetrante de sua angústia. Disse a ele que iria lhe ensinar, naquele momento, procedimentos simples para criar um email e poder trocar mensagens com outras pessoas do mundo todo. No começo foi um pouco difícil e tive que ter paciência, pois sua falta de intimidade com computadores se revelou um obstáculo, até mesmo para o simples proceder de ligar uma máquina. Contudo, como estávamos sozinhos na lan house, pois em véspera de Natal a frequência é quase zero, pude mostrar a ele com calma que se tratava de uma habilidade que ele adquiriria com algumas tentativas. Fizemos um email no Gmail, enviamos o primeiro email para a tal empresa responsável pelo consórcio e, então, expliquei como ele faria para verificar se havia mensagens novas em outro momento que ele precisasse acessar. Após ele ir embora, fiquei pensando na sua angústia de se sentir um isolado dentro da sua própria sociedade, de como ele se sentia sozinho por não ter alguém mais próximo, como um parente, que pudesse lhe auxiliar nessas pequenas coisas que nos mantém conectados ao restante das pessoas. Ele voltou mais duas vezes, antes do fim do ano, para verificar a caixa de mensagens e responder aos emails. O auxiliei mais vezes e ele conseguiu resolver o problema. Não voltou mais depois dali.

Já este ano, a história volta a se repetir. Restando apenas dois dias para o Natal, me encontro sozinho novamente na lan house onde trabalho, quando adentra o espaço uma senhora negra, carregando seus pesados sessenta e poucos anos, me perguntando com educação coisas simples, como o procedimento de uso dos computadores. Expliquei a ela que o acesso era livre e que não havia tempo para terminar. Disse também que poderia escolher qualquer computador. Num primeiro momento, pensei que ela sabia acessar e utilizar de forma tranquila a máquina. Até porque chegou mencionando termos como “telecentro”, “google” etc. Todavia, após alguns instantes, ela retorna ao meu balcão e me indaga: “moço, será que a máquina tá funcionando? Que eu apertei o botão e ela não ligou” Considerei estranho e me levantei para averiguar. Constatei que ela não havia apertado o botão da CPU e, que por isso, o PC não ligou completamente. Aguardei o fim do procedimento de inicialização e abri o Google Chrome para que ela pudesse já buscar o endereço que desejava. A deixei a vontade, disse que estaria à disposição para qualquer problema e retornei ao meu balcão. Passados alguns minutos, uns trinta mais ou menos, ela retorna dizendo que agora não estava conseguindo encontrar um produto de limpeza da empresa local que procurara. Quando cheguei e verifiquei na tela, constatei que as palavras que ela havia digitado na caixa de busca do Google não tinham levado a algum resultado específico e que a empresa parecia não ter um site e, por conseguinte, ela não iria conseguir visualizar tal produto. Ela me olhou ainda com aquele olhar desconfiado do tipo: “Oxxxeee... mas como? Eu já fui lá, sei que tem esse material de limpeza. Como ele tá dizendo que não tem?” Imaginando de longe o que se passava naquele momento com a mente daquela senhora simpática e solitária, tentei explicar de algumas maneiras que a empresa precisa pagar alguém para fazer um site para ela e, que só assim, o site estaria atualizado e com os produtos à mostra para os usuários visualizarem. Acredito que depois disso, ela passou a confiar mais em mim, mas não escondeu sua frustração por não ter encontrado o que queria, como a busca simples de um item de limpeza no site da loja X. Ela me agradeceu e permaneceu acessando por mais alguns minutos. Foi embora depois.

Foi impossível não associar os dois momentos distintos e singulares. Ambos tiveram a característica da época do ano e por buscarem coisas simples, coisas que quase ninguém se importa neste período. Precisaram de alguns momentos em contato com aquilo que lhes assusta por ser, ao mesmo tempo, tão pequeno e tão vasto, tão perto e tão profundo. Não se sentiram acompanhados. Estranharam os mecanismos. Os contatos travados não foram com a naturalidade que aguardavam e nem com a eficácia que imaginaram. Mas, revelaram ambos o quanto estamos sós. Presos em nossas ilhas. E provaram que nas suas festividades interiores nem tudo são flores, sorrisos, alegrias e, que muito menos, termina sempre em fartura e champanhe. Pois estão desconectados. Não se trata de atribuir demasiada relevância ao uso da comunicação via meios eletrônicos, mas se trata de constatar que há uma brecha no muro da evolução, de um imenso buraco que está deixando muitos para trás, quando a propaganda diz que se deve conectar a todos. São tarefas simples, mas que precisam ser executadas. São problemas pessoais, mas que precisam do auxílio da sociedade. São coisas que podem ser resolvidas pessoalmente? Nem tudo. Elas necessitam de tais ferramentas. O mercado lhes exige comunicação, alguma resposta. E agora? O que será daqueles que ainda permanecem desconectados?

Helder S Rocha
Enviado por Helder S Rocha em 04/01/2016
Reeditado em 04/01/2016
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