Terminando OS DEMÔNIOS

Faltam só 25 páginas para eu terminar 'Os Demônios', de Dostoievski. Que experiência incrível. Que loucura! Parei três vezes para ler outros livros, para respirar um pouco, mas sem me desligar da história, dos personagens – do furacão Dostoievski. Não quero terminar... Já sei o final. Não aguentei e li. O jovem Nicolas Stavroguine vai se matar. Não conseguiu lidar com seus demônios...

Na verdade, eu queria que o livro nunca acabasse. Que eu fosse lendo, lendo, e só parasse quando sentisse falta de outras vozes, de outras visões; aí eu pegaria outros livros, vislumbraria um pouco de luz, respiraria um pouco de ar fresco; depois voltaria para as trevas.

Sinto-me como se estivesse caindo num abismo. No início foi como um furacão, mas agora é um abismo. E quando a história acabar estarei no fundo do abismo. Tudo escuro, frio, silencioso. Está logo ali, posso senti-lo. Como voltar para a luz? Como acreditar de novo na bondade, na honradez, na justiça? Como conseguir dizer de novo Meu Deus! Meu Deus!

Eu consigo. Já passei por isso antes. Não é fácil, mas eu quero e posso voltar para a luz.

Ler Dostoievski não é brincadeira. É como alguém te pegar pelos ombros e te sacudir com força gritando Acorda, desgraçado! E depois te jogar para o alto e você sair voando, carregado por uma ventania; ou te empurrar num abismo, que é onde eu me encontro agora, caindo, caindo... Daqui a pouco BUM! – fim do abismo.

Sei que ficarei de pé e voltarei para a luz, mas a experiência da queda no escuro – a sensação de abandono, de medo – e tudo que aprendi com ela continuarão comigo na superfície. Isso não é ruim. A experiência do abismo é muito enriquecedora. No caso de 'Os Demônios', o leitor que chegar ao final e não se matar voltará mais lúcido para a superfície, tenho certeza: verá as coisas com outros olhos, sofrerá menos com o fútil da vida, com o efêmero, com a estupidez dos homens: vaidades, ambições, invejas, mesquinharias... Não sei de ninguém que tenha se matado por causa de 'Os Demônios'. Só sei que não será o meu caso. Já li outros livros de Dostoievski. Como eu disse, só faltam 25 páginas (de um total de 858), já sei que Stavroguine vai se enforcar no final e estou bem disposto. Quero continuar a viver. Sinto-me até mais forte, mais vivo.

De todos os grandes escritores que eu li, o que mais se parece com Dostoievski no quesito ‘experiência de abismo’ é o chileno Roberto Bolaño. Seu livro '2666' é um mergulho profundo.

Em janeiro vou à Espanha, na região de Barcelona, onde Bolaño viveu uma parte importante da sua vida (foi lá que ele escreveu '2666', seu último livro) e faleceu, em 2003, aos 50 anos de idade. Já fiz meu roteiro Bolaño: livrarias cult, cemitérios, cafés e uma ida a Blanes, na Costa Brava, onde Bolaño morou com a esposa e os filhos. Só de pensar nisso, tremo nas bases.

Estou vivo, VIVO!

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 28/12/2015
Reeditado em 28/12/2015
Código do texto: T5493529
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