Pequenas histórias 120
A música romântica
A música romântica de Dolores Duran, como uma câmara cinematográfica percorre os recantos da sala na voz rouca e gostosa de Nana Caymmi. Num travelling ágil desnuda os cantos empoeirados dos pequenos enfeites da alma ali depositados. Desliza ao rés do chão mostrando o tapete vermelho gasto pelo tempo. Depois sobe pelas costas da poltrona até se fixar no rosto cansado de olhos fechados. Em seguida, como obedecendo a ordens, se afasta mostrando toda a cena em seus detalhes.
Sentado na poltrona, com a cabeça virada para o lado, parecendo dormir, esta um homem de seus trintas e poucos anos, tendo numa das mãos pendida para fora do braço da poltrona um copo pela metade de uísque e, na outra mão apoiada no outro braço da poltrona, umas folhas datilografadas, onde se pode ler no cabeçalho: SILVIO E SILVIA. Nisso ao ouvir o copo batendo no chão, o homem se sobressalta, acorda. Esfrega os olhos. Pega o copo e bebe o resto de uísque enchendo-o novamente. Com passos trôpegos chega perto da janela. Olha para baixo. Uma queda dessa altura crê que dá para morrer, pensa inclinando o corpo. Em seguida estica o braço e solta, uma por uma as folhas. Lá se vai à merda empobrecida do que fui capaz de escrever, fala mecanicamente. As folhas ao sabor do vento dançam rodopiando de um lado para o outro, na clara manhã. Uma voz gutural vem lá de baixo. Que porra é essa sujando meu quintal? Vê um homem gesticulando para ele. Grita enfurecido. Cala boca, veado. O homem lá embaixo se enfurece, gesticula, berra, mas ele não ouve, fecha a janela. Volta-se para dentro de si aconchegando-se no ambiente conhecido dos móveis solitários. Enche o copo de uísque. Senta na poltrona. Nota a transformação, vê que a voz rouca de Nana Caymmi fura seus sentimentos em poças de angústias. Desliga o aparelho de som. Recai o silêncio daquilo que não pode ou, talvez, como poderá saber daquilo que não quer fazer. Como poderei soletrar os instantes que me farão escorrer na lentidão de sentir-me capaz de alguma coisa. Entrega-se a opressão que o prende ao chão da sala. Deixa-se levar colhendo aqui e ali, todo o pulsar da música em acordes vibrando em sua carne. Deita-se no chão, pega o controle remoto, liga o som, procura uma rádio, acha uma pulsante como seu corpo deseja penetrar nos acordes loucos do rock. Assim, entre as duas caixas, cai num sono profundo não querendo mais acordar.
pastorelli