A VIDA DE MIGUEL
Aclibes Burgarelli
Na dinâmica universal, em obediência à Ordem estabelecida Divinamente, tudo se resume em acontecer, ou seja, na sucessão de acontecimentos perceptíveis para alguns e imperceptíveis para outra gama de viventes.
Se alguém pretender dar destaque à pessoa humana, deve considerar que se trata de vida animal, mas de animal racional. O ser humano, biologicamente, é espécie do reino animal, porém distinguido pela racionalidade, isto é, pelo dom natural de adquirir conhecimento e tomar ciência das causas pelas quais se explicaria sua existência como pessoa humana. Se quiser, porque é dono da sua vontade.
Do universo de pessoas humanas, pince-se uma, apenas uma, o Miguel e no seu universo interno, humano, procure-se saber o que se passou com ele no relacionamento com seus semelhantes.
Tal qual os demais seres humanos, Miguel nasceu para o mundo exatamente como os demais seres. Também como costuma a acontecer, aquele momento de luz a um novo ser provocou nos familiares a esperança de que, no futuro, o frágil bebê ocuparia alguns momentos de importância para ele próprio, para os que com ele viveriam e até mesmo para a sociedade na qual foi colocado e reconhecido juridicamente com um registro de nascimento.
No caminho por que trilham todos os seres humanos, por ele Miguel caminhou e, no relacionamento com os familiares algo comum também esteve presente: amor, alegria, algumas doenças próprias da idade, o aprendizado inicial para a comunicação, cuidados na alimentação, no asseio, no uso de roupas e no relacionamento com as pessoas do grupo. Os pais não mediam esforços para qualquer tarefa exigida para a segurança, para o crescimento e o bem-estar do filho amado.
Miguel, de sua parte, como todas as crianças, via nos pais e avós certa segurança para o seu caminhar, apesar de não saber objetivamente qual seria o seu caminhar. Passou a primeira e difícil fase que vai até aos 7 anos de idade e, tão logo aconteceram as naturais mudanças físicas, juntamente com o interesse de novos relacionamentos com amiguinhos da escola, sentiu novas sensações, novos gostos, novos desejos, novas esperança, mas, ainda assim, sem desligamento do vínculo afetivo que se formara em relação aos pais.
Os pais, por seu turno mas de igual forma, aceitavam as mudanças naturais do filho Miguel sem o abandono dos cuidados para que seu caminhar não fosse atropelado por fatos desagradáveis, provenientes de novas amizades surgidas naturalmente no dia a dia de Miguel.
Sempre presentes, os pais cuidaram de entregar o filho ao mundo, certos de que, em dado momento, abrir-se-ia a porta para se dar continuidade à vida, de forma diferente, ou seja sem o aperto dos nós representativos dos comandos paternos; sem o afrouxamento não seria possível separar o passado do futuro.
Na juventude de Miguel, de forma natural, a imaturidade se distanciava e sinais de amadurecimento se anunciavam. Iniciara-se a consciência do natural relacionamento com o sexo oposto, com a elaboração de projetos para a vida futura nas áreas profissional, intelectual e moral. Já cogitava ele da necessidade de escolhas adequadas e porque não dizer sentimento de temor, quanto ao procedimento de seus semelhantes em relação à paz de viver.
Conheceu algumas jovens mulheres e delas se apaixonou, na medida de sua sensação pessoal de paixão, porque não dominava o conhecimento a respeito da existência de planos outros que não a terra e das influências do além na conduta humana. Afinal a matéria prevalecia sobre o espírito de Miguel, conquanto se possa admitir que já havia sinais de entrelaçamento entre matéria sobre o espírito, vice-versa.
Sempre há, na vida das pessoas, o primeiro amor, independentemente de idade, de modo que, quanto a Miguel houve quem foi seu grande amor. Como todo o primeiro grande amor, no caso em apreço este também não vingou.
Outros relacionamentos esporádicos aconteceram com sabores diferentes, razão por que brotou na consciência de Miguel a necessidade de ser adotada conduta de muita cautela. Marcado por essa observação, adotou-se o cuidado de se depurar todo e qualquer sentimento que fosse afetado por ação do sexo oposto. Já sabia que o fenômeno amor transcendia em muito a sensação de bem-estar material ou sexual; já percebia que amor físico acaba, mas amor metafísico, é para sempre.
O tempo implacável não cedeu ao curso da vida (rápido para alguns e lento para outro, tudo a depender das expectativas de vida). Para Miguel até que o suceder dos dias, dos meses e dos anos estavam equacionados com seu projeto de vida já bem definido, mesmo com dúvida quanto ao lastro financeiro, suficiente para muitas empreitadas relacionadas à aquisição de conhecimento.
Bem ou mal, na média do povo de seu país, Miguel conseguiu boa posição profissional e financeira e tinha a certeza de que seu projeto familiar, ou seja aquele amor não contaminado pela carne, como o é o amor materno, podia ser tranquilamente realizado.
Encontrou a parceira que lhe estava reservada (sem que o soubesse) e, assim, juntos se dedicaram à construção de família, para cujos filhos, com algumas sobras para os ascendentes mais próximos que ainda estavam vivos, tudo seria reservado sem restrições.
Algumas sobras de atenção, conforme dito, seriam presenteadas aos genitores como uma espécie de retribuição pelas preocupações anteriores e que permitiram Miguel e sua família chegar. Infelizmente a dura expressão “sobras” é uma verdade, visto que, cada membro de uma família faz restrição aos ascendentes da ou do cônjuge parceiro.
Miguel não tinha dúvida a respeito do dedicado amor recebido de seus pais, entretanto ponderava que podia ter feito muito mais por ele, não fossem as restrições da mulher, aceitas para manter o equilíbrio no relacionamento. Assim, sob essa influência nefasta, porém comum a todos parceiros, prometia a si próprio tratar de modo bem diferente seus filhos, em especial a influência referida.
É evidente que não teve a intenção de renegar a dedicação e tudo o que recebera dos pais e estava determinado a amá-los para todo o sempre. No tocante à educação, contudo, via seu passado como exemplo para não ser repetido, no futuro, com seus filhos. Entendi que os pais amados, bem intencionados, agiram de maneira equivocada, na educação dos filhos.
Ele, Miguel, consertaria o equívoco e tinha a certeza de que, com métodos diferentes, seu amor seria mais bem reconhecido; seus filhos seriam mais felizes e consertar-se-ia o nó comum de um cordão que prende o ramo familiar das pessoas à austeridade.
Não haveria de ser dado nó entre a construção pessoal de Miguel (mulher, filhos, finanças, educação, amor, alegria e paz na velhice) e a construção pessoal de seus filhos, cujo futuro seria o mesmo para todos.
A ótica de visão de Miguel tornou-o cuidadoso e preocupado chefe de família com pronta atenção a toda e qualquer necessidade de vida de todos do lar; não se furtava ao pronto atendimento da esposa e dos filhos, sem restrição; apenas desejava – e impunha – rigorosa ordem de procedimento e comportamentos. Ele ditava as regras, porque, segundo ele, as conhecia e sabia muito bem qual as consequências prejudiciais da família se essas regras fossem quebradas.
A vida prosseguiu, os filhos cresceram, estudaram, seguiram muitas regras, tornaram-se pessoas sem vícios nefastos, dedicaram-se aos estudos e ao trabalho e, cada qual, formou sua família. Pode-se dizer que o método de Miguel fora perfeito.
Mesmo assim, com o crescimento do conjunto familiar, não houve ruptura da prática adotada por Miguel, que ficou arraigada na consciência de cada membro, de sorte que, de fato, várias famílias foram formadas, mas, abstratamente sem quebra do vínculo de dependência. Dependência essa que tinha conotação de obrigação.
O inevitável aconteceu. Miguel, por causa do método adotado e do objetivo que impôs, mesmo bem-intencionado, ou melhor com a intenção de demonstrar que, para formação pessoal da prole, seria melhor do que seus pais, percebeu fora norteado pela vaidade. Tudo o mais, fora da vaidade, fora falso ou fator de desculpa esfarrapada.
Antes, quanto havia somente Miguel, esposa e filhos (solteiros), parecia existir perfeita felicidade a qual, em verdade não ia além de mera peça teatral em que, cada ator, é um membro da família no dia a dia do lar. A arte de representação familiar, com o casamento de cada filho, seguiu roteiro outro e ficou claro que a prole não pretendia mais representar o papel anterior, mas viver o papel de seus roteiros, roteiros por eles escritos.
O impacto foi terrível, dado que Miguel compreendeu ser impossível forçar situações cujo rumo é traçado pela Ordem Natural de Deus. Viu-se forçado a retomar sua vida de infância e admitir que todas as frustrações, todos os rigores impostos pelos pais, todas as exigências, antes consideradas atos de desamor, em verdade eram atos de puro amor de seus pais. Ele, Miguel, é que laborou em equívoco, por pura vaidade.
Sem saber como agir, Miguel embrulhou e guardou o projeto traçado, no depósito de trastes de sua mente, e deu uma guinada de 180’, isto é o foco se desviou dos fatos objetivos (de fora), para o interior de sua alma, isto é fato subjetivo.
Fecharam-se as cortinas do palco das representações da peça desprezível, mesmo porque cada ator iria desempenhar peça própria, por eles escrita. Miguel, forçosamente, tornara-se mero expectados das apresentações dirigidas não mais por ele e sim sob a direção de cada membro da prole, em companhia das respectivas famílias.
No íntimo compreendeu que enganara a si próprio ao projetar algo ilusório, ou seja ao projetar a certeza de que os cuidados, o tempo e trabalho preparatório para a colheita dos frutos da boa semeadura.
Esquecera, ou não cogitou, de que, na semeadura de boas sementes, o resultado de boa colheita depende de cuidados em relação aos elementos naturais, como chuvas, tempestades e outras mutações. De outra parte, o elemento pessoal, espiritual, de cada um dos membros da família, isto é, a identidade espiritual de cada um, depende de cuidados especiais imprevisíveis, porquanto estão fora da vontade humana. Decorrem da Ordem Natural de Deus, da qual, o ser humano insiste em ficar afastado.
Miguel tomou consciência de que a família, composta por pai, mãe e filhos solteiros não é igual à família composta por pai, mãe e filhos casados, uma vez que, na primeira hipótese, há uma família e, na segunda, mais de uma família, com vida, costumes e características diferentes, produto de vida diferente. Essa é a ordem natural de tudo.
Quanto a Miguel, felizmente antes de seu desencarne, conseguiu aprender sua última e verdadeira lição. A vida é a grande escola a qual se frequenta para o aprendizado de o resgate de atos de cada pessoa não se cumpre no curto período de tempo na terra. É difícil aceitar e muito mais aprender que existem outras vidas. É difícil e, para muitos, incompreensão, mas por essa razão a vida é uma escola e sem escola não se aprende absolutamente nada.
Aprende-se que há muitas vidas, dentre as quais, a do ser humano, animal racional, de sorte que, nessas existências, alojam-se boas ou más condutas, boas ou má intenções, cumprimento ou descumprimento da ordem universal e, na dança dos contrários (bem-mal, bom-mau, feliz-infeliz etc.), posiciona-se o fiel da balança, isto é a consciência plena de que a lei de causa e efeito é inexorável, em uma ou em outra existência.
Após o grande aprendizado, não importa mais a maneira pela qual Miguel se conduziu nos derradeiros anos de sua existência física, porque ele e somente ele e para ele, um caminho seguro foi revelado. O caminho, só dele, exige lucidez, compreensão, resignação, tolerância, amor e esperança.
Não importa para Miguel o julgamento de outras pessoas, a respeito dele, tampouco que juízo dele fazem, mesmo porque é ele próprio quem adverte: Quem tem telhado de vidro não atire pedras no telhado do vizinho.
Por hoje é só…