Tudo se parece com o fim
A corrida mais louca, voraz e lenta que já vi. Todos levando o máximo de comida e de bebida que podem, a bagagem em excesso, aceitando qualquer forma de condução, sem conforto, vão mesmo amontoados, certos de que irão sofrer horas em filas quilométricas. No espaço confinado de qualquer veículo as necessidades mínimas se transformam em tortura, um verdadeiro suplício. Quem embarca nessa jornada compreende tudo isso, quem se permite atravessar uma rodovia na véspera de um feriado tem nem que seja uma vaga noção de que poderá morrer nesse trajeto.
Na virada do ano poucos são os que se percebem de que estão mais perto do fim do que nunca. A massiva reunião de pessoas nas rodoviárias, nos portos e nos aeroportos; as centenas de veículos nas estradas e as tantas pessoas esperando contra toda a adversidade algum transporte que as leve; tudo isso se assemelha a fuga da humanidade por causa de uma catástrofe. Não precisamos pensar em como será a fuga no fim do mundo, todo feriado, todo fim de ano esse espetáculo se repete.
Nos dias que antecedem ao Natal e ao Réveillon a vida se enquadra entre o engarrafamento e a ultrapassagem; a azáfama das compras e a imobilidade glutona; entre a casa tomada por gente e as confraternizações do trabalho. No curto espaço de tempo de duas semanas todas as ações caridosas, todos os gestos largos todas as intenções altruístas são concentradas junto ao exagero das celebrações iluminadas e o consumo obrigatório. Muitos querem exceder qualquer prazer que tenham; a comida perde o sentido da nutrição; a bebida o sentido da saciedade. As músicas de tão repetitivas e em volume exagerado passam por mais um enfeite extravagante. Muitos olham o relógio atribuindo-lhe quase propriedades mágicas, querendo que os movimentos dos ponteiros signifiquem mais do que a contagem das horas. O céu dessas noites, cheio de fumaça e de brilhos, perde sua calma natural, seu plástico silêncio. Os que olham para o firmamento esperam ver alguma magia determinar o começo de um novo tempo, mas vão assistir apenas a explosões planejadas, ao show que foi preparado para dar um sentido especial a uma noite comum. O céu fica poluído com tanta pirotecnia, com tanto barulho de fogos, de vozes e de alto-falantes; são poucos os que procuram um espaço tranquilo para apreciar a singela beleza do céu com suas luzes naturais.
O ano novo começa finalmente. A maioria sobreviveu a sua chegada. Ainda se amontoam como se o fim tivesse advindo, muitos ainda bebem, comem e amam como se o amanhã não houvesse chegado. Muitos ainda celebram um conceito ingênuo repetindo clichês vazios. Foi preciso um ano inteiro para que se pensasse que o último dia faria a mudança que a vida precisa sofrer. O ano termina, o dia amanhece, mas não mudou tanta coisa assim. É preciso voltar, recolher os restos e jogá-los ao lixo, cuidar da ressaca, pensar na pílula do dia seguinte, tentar achar com ânsia uma passagem de volta, um pouco de água, os pertences que sumiram. No dia seguinte ao fim do ano começa a busca pelos bens perdidos, inicia o remorso pela noite do passado.
A multidão precisa voltar, o êxodo dos sobreviventes principia. O que foi deixado distante precisa ser retomado. Todos voltam cheios de histórias, de dívidas ou de culpas. Alguns não tomarão parte na tragédia do cotidiano reiniciado, ficarão em algum ponto entre o desejo de voltar e as saudades da celebração. Dos festejos não voltam somente os cansados, voltam também os mortos. Mas a todos resta a normalidade da vida, a segurança da regularidade dos hábitos. São os velhos costumes e afazeres que mostram que o mundo não acabou. Entre a promessa feita de mudança e um hábito anualmente repetido fica o constrangimento da certeza de que ainda resta um ano mais para outra tentativa. Aos sobreviventes, depois de mais um ano maçante de frustrações e de dívidas acumuladas, felizmente chegará o místico intervalo ao ciclo de degradação da rotina. Nova migração terá início em busca de fogos no céu e sujeira na praia.