Memórias

Vagava lentamente pelas ruas. O vento bagunçava-lhe os cabelos cacheados agora excepcionalmente curtos, parte negros como ébano, parte rubros, quase num rosa gritante. Os lábios entreabertos pintados de um vermelho sangue comprimiam-se cada vez que sua mente era tomada pelas lembranças. Ora sabia serem reais, ora pareciam miragens, mas eram igualmente inquietantes.

A moça avistou ao longe um banco vazio. Sentou-se. O passado andarilhava sua mente tal qual um replay dado num filme de televisão. Um filme que ela ansiava com todas as forças esquecer. Fazer dissipar como a fumaça do cigarro que tragava.

As cenas passavam-se com assustadora nitidez. Via-se na infância incompleta, sentada ao canto da sala, observando pela janela as crianças que lá fora corriam e sorriam. Num giro rápido a cena mudava. Via-se aos cantos da escola, na tentativa torpe de escapar das caçoadas e dos olhares de menosprezo que sempre advinham de suas colegas, tão mais formosas e equilibradas.

À essa altura seus olhos já estavam tomados pelas lágrimas por trás dos óculos escuros que usava. Sabia a cena que estava por vir e temia mais que qualquer coisa rever esse fragmento do filme que se passava.

De repente estava de volta aos seus oito anos, deitada, imóvel, o colchão às suas costas parecia arder em brasa. Tocava-a, de uma forma que ela não entendia o porquê. Afinal, ele não era também uma criança? Dois números a mais na idade poderiam fazer tanta diferença assim? Por que aquilo lhe parecia um mergulho no paraíso prometido quando à ela só trazia medo, desespero e dor? Não sabia. Continua a não saber.

Os minutos arrastavam-se como horas até que ele finalmente a deixava ir, sempre com o pedido de manter aquilo em sigilo. Ela concordava. Sentia nojo de si mesma, vergonha, sentia medo. E sentiu-se assim, dia após dia, a cada vez que ficavam à sós, a cada vez que essa possibilidade a rondava, convivendo com o medo a cada segundo, até os seus onze anos.

Ele mudou-se, naquela tarde de alívio. Mas não levou com ele as memórias, elas permaneceram, assombrando-a como expectos negros.

Isso à impactou de forma avassaladora. Tivera dois namorados na adolescência, nada muito sério, nada concreto. Não pudera suportar a ideia de ser tocada daquela forma outra vez e, com as frequentes tentativas, embora não tivessem culpa, foi obrigada a afastá-los.

Permaneceu sozinha presa ao medo e atada as memórias por um bom tempo. Eventualmente, conhecia alguém, mas sempre fora decidida a não permitir-se mais aproximação do que sua zona de conforto permitiria.

Até que o conheceu... Naquela manhã cinzenta e fria, quando vivia uma das piores fases de sua vida até então. Encantara-se quase que imediatamente por seu jeito meigo e doce, tão singular aos demais. Os dias foram passando, aproximaram-se cada vez mais, começaram um relacionamento. O medo a invadiu, sabia que logo chegaria o momento em que teria que desprender-se das amarras do passado ou vê-lo partir. Não suportava a ideia de vê-lo ir embora. Resolveu permitir-se...

A cena em sua mente mudara outra vez e agora as boas lembranças a invadiram. Aquelas que mostravam que as mesmas ações vindas de pessoas distintas poderiam ser o céu ou o inferno. Ele lhe é paraíso e transformara um de seus maiores medos literalmente em amor.

O filme chegara ao fim em seu cinema particular. A moça tirou os óculos, secou as lágrimas, olhou mais uma vez ao seu redor. Levantou-se e se pôs à caminhar. Era a hora de ir pra casa...

Gabi Lima
Enviado por Gabi Lima em 26/12/2015
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